Carta de Marcos Creder | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Carta de Marcos Creder

A carta de Krishna Monteiro sobre “Galileia” levantou mais uma vez a poeira do sertão que inauguro no romance. Ele existe? Como alguns torcem por “Estive lá fora” – as comparações de valor são inevitáveis –, publico a carta do escritor e médico Marcos Creder. Ele faz um mergulho vertical no Recife de “Estive lá fora” e aponta o sertão escondido na cidade.

Olá Ronaldo,

Acabei de ler seu ótimo livro. Posso fazer inúmeros comentários, mas queria destacar um aspecto para mim muito peculiar. Interessante que já li vários livros ambientados no Recife dos anos 1960-70 e, muitos deles, apesar de retratar um momento complicado da vida política do Brasil, fazem um retrato nostálgico, como se houvesse uma doçura que, de fato, nunca existiu. Recife foi e é a cidade que você descreveu. Seu texto me trouxe várias experiências sensoriais. Parecia, em muitos momentos da leitura, que se sentia o calor, a umidade, os odores fétidos e o crepúsculo de um Recife paradoxalmente sensual e opressivo. Vou um pouco mais além. A cidade de Estive lá Fora, extrapola a dimensão descritiva e ganha, com seus enxertos subjetivos, vida própria. Recife é, no romance, uma cidade orgânica, cruel e divina – acho que esse mérito pude ver com semelhante nitidez na Combray de Marcel Proust e na Florença alucinada da Commedia de Dante. Em resumo, Recife, em seu romance, é uma cidade sem bordas como o Livro de Areia de Borges. 

Onde estaria o Sertão?

Ao ler seu livro tive uma recordação de um momento já quase esquecido. Há uns 15 anos, ou mais, fui a um Festival de Teatro aqui mesmo em Recife. Havia vários esquetes, peças curtas, leituras dramatizadas, discussões e oficinas de trabalho. Eu estava no Teatro do Parque e soube que lá fora, no jardim, na penumbra, iria ter uma apresentação da peça Malassombro – tomei conhecimento de que o texto era seu no momento da apresentação. O cenário era simples e ao mesmo tempo catártico: três mulheres, muitas velas acesas, panos e lençóis brancos no meio daquela escuridão. Caía uma chuva fina. O espetáculo continuou e em algum momento, uma mulher ao meu lado cochichou para outra, “isso aí é o Sertão”. Olhei para a paisagem fora da cena, senti a umidade e o cheiro de mofo do Recife e pensei daqueles gritos lancinantes das personagens, como autenticamente recifense, ou de nosso subsolo de nossas aflições – “a dor é mercadoria comum nas esquinas de Recife” (Estive lá fora). Foi nesse momento de minha recordação que percebi que o Sertão que se sustenta em Estive Lá Fora é tão vertiginoso quanto a região da Mancha em Cervantes. Cirilo, no romance, protagoniza, por assim dizer, as incongruências do tempo e de lugares. Muitos Geraldos, Rosas, Paulas, Leonardos se foram, mas Cirilo e esse Recife e seus adjetivos continuam. 

Muito bom, excelente, parabéns.
Abs,
Marcos Creder 

Foto: José Clésio

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