
11 jul Do sonho dos homens
Para os que tiveram preguiça ou dificuldades em abrir a página da Air France Magazine e ler o meu texto sobre o Recife, segue abaixo. Acompanham as belas fotografias de Matthieu Salvaing.
Na tarde em que caminhei em busca do ônibus que me traria ao Recife, lembrei uma canção antiga. Ela falava de uma cidade que adormecia e ficava a sonhar, ao som de triste melodia. Escutei-a pela primeira vez quando tinha sete anos. Os nomes estranhos de pessoas e ruas se gravaram em mim como os ferros em brasa, usados para marcar o gado. Temendo que o Recife se revelasse diferente de como o imaginei, seguia viagem.
Para trás ficava o Crato, a pequena cidade onde eu morava, com seu resto de floresta atlântica, a chapada rochosa do Araripe – que já fora submersa num oceano –, peixes, aves e plantas resguardados como fósseis nas lajes. Eu atravessaria o sertão, depois o agreste, e por fim chegaria ao litoral pernambucano, onde a história do Brasil começara. Receava pôr os pés na terra familiar e estranha, com rios correndo o ano inteiro, o mar azul e verde, os edifícios mais altos do que árvores. As cidades são tão conhecidas que nem é preciso visitá-las, a gente tem na memória – eu me dizia para acalmar o medo.
Durante quase vinte horas cheirei fumaça nas estradas, assisti da janela a paisagem sertaneja cinza e marrom se transformando em verde esmaecido, até ser o verde exuberante das matas e quintais. Deve-se chegar ao Recife pelos ares, voando de ultraleve. Assim podemos enxergá-lo inteiro em meio ao oceano, aos rios Capibaribe e Beberibe, às marés e aos mangues. Cada pedaço de terra firme cercado de águas salobras, formando ilhas que se chamam Santo Antonio, Leite, Boa Vista, Retiro… Unindo-as como as costuras de uma saia, pontes compõem um cenário suspenso, dão a impressão de que a cidade flutua e foge ao destino de afogar-se no Atlântico. A nenhum viajante, porém, o Recife se entrega imediatamente. Seu melhor encanto consiste em deixar-se conquistar aos poucos. É uma cidade que prefere namorados sentimentais a admiradores imediatos, pois não é fácil de amar, como observou o sociólogo Gilberto Freyre.
Eu possuía alguns códigos para desvendá-la. Davam notícia de parentes que moravam no Pátio do Livramento, que no passado fora uma lagoa, canalizada durante a ocupação holandesa. Aos meus olhos diletantes, os sobrados de três e quatro pavimentos, com balcões e grades de ferro sobre colunas de pedra, remetiam à arquitetura colonial portuguesa. Seriam os mais belos casarios, tão encantadores quanto os da rua do Bom Jesus – antiga rua dos Judeus –, e os da Aurora, que olham o rio Capibaribe no seu trajeto para o mar. Uma cidade se conhece caminhando. Eu olhava para cima, tentava adivinhar o que se escondia por detrás de janelas mouriscas, removia a caliça das paredes e inventava histórias. Qual história, perguntava, a de um homem que se encantou com a batida dos sinos das igrejas? Todo ano, o maluco percorria uma centena de léguas, transportando fardos de carne seca em lombo de burros, do sertão do Ceará para o Recife. Deslumbrado com a cidade ele esqueceu esposa e filhos e nunca mais voltou para casa. Juram que morreu. Outros garantem que se transformou em mais um fantasma do Recife. Perambula por praças, toma banho na praia de Boa Viagem, se abriga do sol quente na Basílica de Nossa Senhora do Carmo, com seu esplendoroso altar barroco pagão, coberto de ouro e cores vivas.
No começo o Recife era apenas uma ilha estreita, brotada entre águas de rio e oceano, onde pescadores e navegantes se arranchavam. Mais à frente dessa terra ‘metade roubada ao mar, metade à imaginação’, como escreveu o poeta Carlos Pena Filho, protegendo-a e criando um porto natural, os arrecifes de corais que os árabes diziam ár-raçif se estendem iguais a um caminho pavimentado. Deles veio o nome da cidade, o masculino Recife, e o porto em torno do qual tudo prosperou. Por ele entraram colonizadores portugueses, piratas franceses, invasores holandeses e parceiros comerciais ingleses. A geografia pareceu familiar aos flamengos, quando conquistaram Pernambuco em 1630, tendo à frente o conde Maurício de Nassau. Durante 24 anos, até que os holandeses fossem expulsos, Recife transformou-se na Mauritzstad dos Armadores das Índias Ocidentais, a cidade Maurícia. Nesse curto tempo, se abriu ao comércio, ficou cosmopolita, falava vários idiomas da Europa e de outros lugares do mundo, ganhou prédios, pontes e saneamento, conheceu relativa liberdade de culto, recebeu judeus que fundaram a primeira sinagoga das Américas e viviam fora de guetos ou judiarias.
A lembrança boêmia do bairro portuário, o Recife Antigo, prevaleceu sobre o presente. Bares e edifícios no estilo eclético abrigaram furtivos marinheiros. Os idiomas do mundo se misturavam ao sotaque recifense de mulheres e estivadores, ao som de pianos e vitrolas. O lugar onde tudo começou foi batizado Marco Zero; ali a cidade celebra suas festas. Partindo-se dele e atravessando uma faixa d’água, chega-se a um parque de esculturas, conjunto de obras em cerâmica e bronze do artista Francisco Brennand, sobre os arrecifes de corais. Ao longo dessa esplanada, sereias metade pássaro alçam voo ao infinito.
Olho para trás, não receio transformar-me em estátua de sal, como na história bíblica. O Recife é quente – mesmo com a brisa que sopra –, a maresia cheira forte e recobre nossa pele de água e sal. Há som ao redor, barulho de vozes, motores e buzinas, orquestras e tambores no carnaval. Caminho. Subo ao último andar do Paço Alfândega. Do terraço, contemplo por cima do rio-mar o Grande Hotel, onde se hospedou Albert Camus na década de 50. Febril, ele comparou a cidade a Florença. Outros acharam que fosse uma Veneza Americana ou uma Sevilha sem praça de touros. Nunca soube se Camus provou a culinária do restaurante Leite, a ‘cartola’, preparada com banana, queijo de manteiga, açúcar e canela. Nem se entrou no Teatro de Santa Izabel, ou no Palácio do Campo das Princesas, com os seus jardins tropicais concebidos por Burle Marx.
Recife é vário, criou-se na mistura de povos, de índios, negros e brancos. Nos arredores, encontramos sua mais forte expressão: a cultura popular. Propalam a raça morena, porém a harmonia racial é relativa. Depois de revoluções libertárias, o Recife continua desigual. Mas os poetas nunca deixam de amá-lo. Andam de madrugada para escutar os próprios passos e sentir a brisa marinha, que varria fortalezas e canhões, acariciando os cabelos. Escutam os sinos, que batem no alto das torres, testemunharem as horas, marcando esperanças e temores. E quando a noite desce sobre as pontes e os rios, sobre ruas e edifícios em ruínas, descobrem um Recife habitado por fantasmas de heróis anônimos, dormindo e sonhando ao som de triste melodia.
Link original: http://magazines.airfrance.com/en/air-france-magazine/207-july-2014/
Fátima Oliveira
Posted at 19:07h, 24 julhoA Cidade do Recife encantada… e cantada por Ronaldo Brito, torna-se ainda mais misteriosa em seus assombros noturnos e ainda mais iluminada nos dias ensolarados, nos quais nos deleitamos nas redes das varandas em tardes mornas… Boa crônica nos enleva e eleva a Cidade amada, preservada em sua poesia arquitetônica, entremeada pelos rios e banhada pelo mar.