
22 jun Os cacos do tempo
Luiz de Goyanna, escrito assim mesmo e, por cima, em letras barrocas. Conheci-o através de um colega de casa do estudante. Quando pensei em alguém para interpretar um velho enlouquecido, no filme Lua Cambará, fui procurá-lo. Encontrei-o numa igreja, restaurando santos.
– Luiz!
– Coincidência, Ronaldo. Sonhei que Câmara Cascudo vinha me convidar para um filme. Sentava no lugar onde você sentou.
Diante de tamanha premonição, ele não podia recusar meu convite para trabalhar de graça, a troco de experiência e aventura.
Levou-me à sua casa. Na sala de visitas, atrapalhando o acesso ao corredor, um anjo aos pedaços.
– Vai pra mais de cinco anos que caiu do telhado. Confiei nesses fios de náilon. Pendurei o anjo e ele se espatifou no chão. Ainda não tive tempo de recolher os cacos e restaurar. Disse ao rapaz da limpeza: deixe aí mesmo, varra em torno. Parece um monturo. Cadê o tempo? O que houve com o tempo da gente? Não dá para mais nada.
Acabou? Ou terá ganhado nova medida? Nem li as várias teses de mestrado e doutorado sobre Faca, Galileia, Livro dos homens… Prometi ler todas elas. Perdoem-me, queridos mestrandos e doutorandos. Sinto-me honrado, reinventado, novo com o trabalho de vocês. Quero ler tudo. Mas, e o tempo? Mal respondo aos e-mails. E os livros que recebo nas viagens ou pelo correio? Olho para eles em cima da minha mesa. Eles me devolvem o olhar e me cobram leitura. Um livro só ganha vida quando alguém o lê.
“Chega o tempo do abandono. Hora de se pôr de pé e deitar os mortos”. Memorizei os versos de Inês Monguilhott, de São José do Rio Preto. O livro se chama Outros e recorda os mortos do Araguaia. Quantos versos bonitos como esses eu perdi de ler! Nem agradeci a Dimas Macedo o seu Liturgia do Caos. Nem a Arnaldo Saraiva, Ana Luísa Amaral, Marcos Pashe, Luis Krausz, Francisco Cartaxo, Rafael Caneca, os livros que li, ou li pela metade, ou deixei de ler, ou recortei como encaixes de um quebra-cabeça para posterior uso.
Nada do que deixei de agradecer, ou de prestar contas de leitura, fiz por desleixo ou descaso. Conheço a ansiedade dos escritores, experimento o mesmo desejo de ganhar vida através da leitura. É que o tempo… Precisaríamos de algumas vidas, ou de sermos muitas pessoas. No meu caso, um Ronaldo que fosse ao hospital, outro que ficasse em casa lendo, e mais um produzindo literatura, outro escrevendo às pessoas, e um para frequentar o pilates e caminhar e nadar. E o da família, dos almoços nos sábados e domingos? E o de ver cinema, teatro, shows e concertos. E o de simplesmente silenciar, ou se deter entre os rochedos, quando ninguém mais se detém entre os rochedos.
Aos que prometi resposta e não dei resposta, se imaginem ao meu lado e generosamente me perdoem.
Imagem: Paganpoetry17
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