13 out Vida, morte e celebração
Minha primeira lembrança do teatro é a de uma calçada alta e cortinas improvisadas com lençóis. A encenação aconteceu no sertão dos Inhamuns, no Ceará, à luz de candeeiros, numa noite misteriosa. Representava-se um drama, como popularmente se chamavam pequenos esquetes, cançonetas e farsas, romances e entremezes anacrônicos, guardados de memória e transmitidos de geração em geração. Ao meu pai coube a façanha de escolher entre os moradores da fazenda os que conseguiam decorar os textos e dizê-los com a cabeça erguida. Eu tinha quatro anos e desde então me pergunto de onde vinha o desejo de representar.
Aprendi que o teatro sempre esteve ligado aos ciclos da vida do homem. No Egito antigo, os sacerdotes sacrificavam o rei e a rainha no ato da cópula, espalhavam o sangue pelas margens do rio Nilo, acreditando que dessa maneira propiciavam as cheias e a fertilidade. Tempos depois, essas mortes foram simbolizadas numa representação teatral. No distante sertão dos Inhamuns, repetíamos um ritual semelhante, porém atenuado. Após longos períodos de estiagem, banhávamos os túmulos dos mortos, cantando e chorando, pedindo que chovesse, trazendo vida à terra seca.
Estão aí os temas fundadores do teatro: vida, morte, celebração.
Quando fui morar no Crato, com cinco anos, iniciei-me nos rituais da igreja católica. Nossa vida regulava-se pelo calendário das festas e pelo sino da catedral. Almoçávamos quando batiam os onze repiques, jantávamos às cinco horas, dormíamos às oito. Nas missas, as representações solenes, os cenários magníficos, o júbilo diante do sagrado e o sentimento coletivo de celebração me impressionaram. Foi o meu segundo encontro com o teatro. Via as liturgias, a pompa, a música e o canto como representações. Entrava na igreja com a emoção de um espectador, a mesma de quem vai ao cinema ou a uma casa de espetáculos.
Em maio, celebrava-se Maria, como os gregos Ártemis e os romanos Diana. De manhã cedo, um andor levava Nossa Senhora da igreja para a casa de algum fiel, onde ela passava o dia. De noite, enfileirados numa procissão de velas acesas, trazíamos a santa de volta para sua morada. Durante um mês repetíamos esse ofício, ao som de vivas, cantos e fogos. Na última noite, armava-se um altar monumental, no extremo da praça da matriz, coberto por dezenas de anjos, arcanjos, querubins e serafins. Começava a solenidade de coroação, a praça cercada por uma bateria de fogos, a igreja revestida de girândolas, o vigário a postos e milhares de fiéis com os corações palpitando.
Cantavam os anjos, tocava a banda, a imagem de Maria Santíssima exultava aos nossos olhos crédulos. Depois de uma interminável expectativa, o anjo mais graduado, a postos na altura infinita do altar, pousava sobre a cabeça da Virgem uma pequena coroa de rosas. Era o sinal para as portas do céu se abrirem aos mortais. O vigário gritava: viva Nossa Senhora! Nós respondíamos: viva! A banda executava o Glória majestoso, um fogaréu iluminava a fachada da igreja, bombas explodiam, formando uma cerca de fumaça. Os demais anjos sopravam trombetas, tudo resplandecia, emocionava, e as pessoas acreditavam que o céu poderia ser bom como naquele instante.
Contrapondo-se ao júbilo mariano, a sombria teatralidade da Semana Santa nos precipitava num mundo de medos e culpas. Cobriam-se os santos de pano roxo, rezavam-se as vias sacras, obedecia-se um rigoroso jejum. Ao invés dos benditos contentes, o lamuriento cantochão. As matracas no lugar dos sinos. O Senhor Morto corria a cidade dentro de um esquife macabro e arrancava lágrimas no seu encontro com a Mãe Dolorosa. Não tomávamos banho na quarta-feira, não assobiávamos na sexta. No sábado, felizmente, uma réstia de alegria. À meia noite, acordados à custa de café e curiosidade, assistíamos a missa de aleluia, o mais exuberante teatro religioso.
No instante da ressurreição, apagavam-se as luzes da igreja, tocavam os sinos, os fiéis baixavam a cabeça. De esguelha, arriscando ser excomungado e ir para o inferno, via a imensa cortina negra, que ocultava o Cristo Crucificado, despencar das roldanas que a sustinham, revelando um novo Cristo, vivo e refeito, a não ser pelas chagas causadas pelos homens. Sentia-me cúmplice daquela revelação, talvez seu único espectador, e era possuído por um sentimento de infinita bondade. O domingo seguinte, eu o vivia em perfeita paz, absoluta plenitude. Tanta bondade, no entanto, não durava mais que algumas horas. As diabruras de menino retornavam no dia seguinte.
O quintal da nossa casa no Crato dava para um terreno grande, onde morava um mestre de reisado. Nesse teatro ao ar livre, sob cajueiros e mangueiras, eu acompanhei várias representações do auto popular. Os brincantes, vestidos de cetim azul e encarnado, dançavam em duas fileiras, representando cristãos e mouros nas suas brigas. Jaraguá aterrorizava os meninos, em compensação, as espadas tinindo nos combates despertavam nosso gosto pela aventura, o desejo de também correr o mundo como Roldão e Oliveiros.
Esse universo pertencia a uma classe social definida, a dos pobres. Ricos não brincavam reisado, só assistiam. Não era como agora, em que todos sobem nos carros alegóricos das escolas de samba. Nenhuma lei escrita impedia que um menino de classe média fosse figural de reisado. Mas, existia uma barreira social: reisado era brinquedo do povo.
As lapinhas possuíam uma interdição ainda mais severa para mim: somente meninas dançavam nesses pastoris. Ciganas, estrela, sol, lua, borboleta, pastorinhas e beija-flor cantavam e dançavam. Frustrava-se o meu sonho de atuar. Consolei-me com umas asas de borboleta e de anjo, que pedi à dona de uma lapinha, empregada da nossa casa. Pendurei-as no telhado do quarto de despejo, longe dos olhos de meu pai. Como no filme de Bergman, Fanny e Alexander, em que a alma do artista é simbolizada por Ismael, o proscrito, preso num subterrâneo, eu tentei aprisionar a minha paixão pelo teatro. Não consegui. A alma pressente o que busca e segue as pegadas do seu obscuro desejo, afirma Platão.
Publicado originalmente na Revista Continente #190
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