05 out Sob camadas de esquecimento
No dia 26 de julho, enquanto atendia os doentes, escutei um canto forte e bonito, parecendo a voz de Clementina de Jesus. Nada demais cantar, embora as pessoas cada dia cantem menos enquanto trabalham ou se divertem. O inusitado é que a mulher cantava dentro de uma enfermaria, num hospital de trauma com mais de cem leitos. A cantiga veio logo depois de gritos sofridos, por causa dos curativos dolorosos a que ela estava sendo submetida. Parecia um alívio ou pedido de desculpas pelo transtorno que os gritos causaram.
Deixei de examinar um paciente, para ouvir o que cantavam. Seria um ponto de umbanda? Melhor perguntar.
– Gostei de sua voz. A senhora canta bem.
– Gostou? Era um hino evangélico.
Conheço o disfarce. Antes, os cultos religiosos negros se escondiam atrás das devoções católicas, por conta das perseguições da Igreja e da polícia. No mais famoso terreiro nagô da cidade do Recife, o Sítio de Pai Adão, onde existe plantada uma gameleira de copa imensa, o Iroco, os devotos saíam à rua com andor para São João e, depois, a portas fechadas, tocavam para Xangô. Cada dia menos prestigiadas e sem liturgias, as religiões africanas e seus praticantes agora se diluem nas seitas evangélicas, que também demonizam os orixás. Percebendo a vergonha da paciente em afirmar suas origens, também uso de artimanhas em minha investigação.
– Não achei que fosse um hino. Parecia mais um bendito de romeiro do Padrinho Cícero.
A negra velha de oitenta e sete anos abre um sorriso e solta uma gargalhada. Possui uma voz forte, com um acento no “r” que apenas os antigos possuem. Esquece o desespero por estar internada há mais de dois meses, de início para uma cirurgia de fratura de fêmur, que nunca foi realizada, e agora para o tratamento das complicações do internamento prolongado – escaras e infecções.
– Fui ao Juazeiro, sim. Não do jeito que vão agora, em caminhão e ônibus. Viajamos a pé, em lombo de jumento, minha irmã mais nova escanchada na cintura de mamãe. O Padre ainda era vivo e batizou a menina. A gente dormia debaixo dos pés de árvore, acendia fogo, cozinhava o comer. Já ouviu falar em Lampião, em Antonio Silvino? Não eram como os bandidos de hoje. Agora tem mais gente e mais bandido. Me escondi muitas vezes com medo de cangaceiro.
E conta histórias de cangaço, sertão, viagens, terrores. Relembra os irmãos, as tias velhas encarquilhadas em cima da cama, os parentes escravos. Felizmente livrou-se da escravidão, mas se tivesse de ser, seria. Parece outra à medida que fala, liberando a memória soterrada, agora fresca e lúcida. Abre a tampa do baú de reminiscências. Reconstitui o dia em que Getúlio Vargas se matou, refaz análises jornalísticas da época. Chora inconsolável quando fala do governador Miguel Arraes. Graças a ele ganhou um terreno e ergueu um barraco.
– E o ponto?
– Que ponto?
– O que a senhora cantava há pouco? Não me engane, também sei das coisas. Nunca guardei quarto, mas jogaram pra mim e me deram um Orixalá de frente e uma Iansã de costa.
Ela fica muda. Olha para os cantos e baixa a voz.
– O senhor sabe, é a religião de meu povo, da nação. Também não raspei cabeça, mas andei em tudo que é terreiro do Recife e recebo os orixás. Agora não vou mais a lugar nenhum. Mas se eu permitir, incorporo aqui mesmo, nessa cama.
– E quem é seu santo?
– Não posso dizer, é segredo.
Porém revela os nomes de todas as casas ilustres do Recife, onde se cultuavam os orixás. Conta as histórias dos pais e das mães de santos, as particularidades de cada um e as futricas dos terreiros. Confiante no interlocutor, ela ignora a companheira de enfermaria, eleva a voz e solta a língua. Dá mais risadas, se agita, faz trejeitos no rosto, trai suas origens. Arrisco-me.
– A senhora é filha de Xangô.
Ela ri satisfeita.
– E da velha Nanã.
Nanã é a mais temida de todos os orixás. É também a mais velha, poderosa e respeitada. Seus cânticos são súplicas para que levem a morte para longe, permitindo que a vida se mantenha.
26 de julho é o dia de Senhora Santana, o dia de Nanã. Seria para ela que a mulher cantava?
Daniel de Albuquerque
Posted at 21:46h, 06 outubroArretado, gostei demais, gostaria de ter ouvido as histórias…