14 dez Quero meu baião-de-dois
Havia um jeito simples de se preparar o baião-de-dois, prato da culinária cearense em que se misturam o arroz e o feijão. Muito antigamente ele era cozinhado em panelas de barro, no fogão a lenha. Segundo os mais puristas, o barro e a fumaça da lenha queimada acrescentavam um sabor especial à comida. O escritor Junichiro Tanizaki, autor do ensaio Em louvor da sombra, defensor fanático da culinária japonesa tradicional, talvez sugerisse que o baião-de-dois fosse servido num jantar às cinco da tarde, como antigamente, com as pessoas sentadas numa mesa ao pé da janela, de onde fosse possível apreciar o por de sol e o gado voltando aos currais.
Mesmo cozinhado em panela de alumínio, num fogão a gás, e servido num restaurante de cidade, o baião-de-dois pode manter suas qualidades culinárias. O feijão ou a fava devem ser de preferência verdes, temperados com coentro. O arroz precisa ficar bem solto. O queijo, de prensa ou coalho, cortado em cubos, é enfiado na mistura, quando o baião já está secando. Para os que apreciam nata de leite ou de coalhada, sugere-se que ela seja misturada bem antes do queijo. Eu prefiro uma camada fina de toucinho torrado, espalhada sobre o baião, quando a panela vai saindo do fogo.
Come-se o baião-de-dois com vários acompanhamentos. Se ele for preparado com bastante coentro, nata e queijo, o ideal é servi-lo sem mistura, bem quente, um pouco molhado. Se esses ingredientes ficaram de fora, deixa-se o baião secar um pouco mais no fogo e come-se misturado com paçoca, carne de sol assada ou frita, linguiça caseira, costeletas de porco fritas no toucinho, ou simplesmente com ovo estrelado e torresmo. De qualquer maneira, desde que seja bem feito e com os ingredientes adequadamente escolhidos, o baião-de-dois é uma iguaria sofisticada.
Tornou-se quase impossível comer um clássico baião-de-dois no Ceará. Pelo menos, nos restaurantes. Com a nossa vocação antropofágica, fomos incorporando os mais exóticos ingredientes à mistura, de modo que já nem reconhecemos os antigos sabores. É verdade que a rica culinária brasileira criou-se nas substituições, graças às cozinheiras que trocaram a farinha de trigo pela goma, massa de mandioca e fubá de milho; o leite de vaca por leite de coco; a manteiga do reino por manteiga da terra; as nozes e amêndoas pelo gergelim, amendoim, ou castanha. Porém, às vezes exageramos na dose. O desejo de criar pratos que se assemelhem à culinária internacional leva a adulterações grosseiras de quitutes testados e aprovados ao longo dos anos.
Baião-de-dois com creme de leite e queijo catupiry não combina. Nem é necessário lembrar o japonês citado, pois seria o mesmo que fazer sushi com macaxeira. As bordadeiras desenvolveram técnicas para o labirinto, a renascença e a renda de bilros, trabalham com habilidade, precisão e rapidez. A culinária também exige conhecimento e prática. Do mesmo modo que se escolhe um tecido fino e linhas adequadas para os bordados, a culinária se faz com bons ingredientes, temperos certos, receitas e tradição. Cozinhar não significa misturar ingredientes aleatoriamente, como está na moda fazer. Até inventou-se nomes para isso: cozinha experimental, cozinha conceitual.
Os restaurantes modernos abusam dos sucos de manga e maracujá nas carnes e peixes, do mel de rapadura enfeitando os pratos e misturado aos risotos, das castanhas de caju, dos abacaxis, cocos, bananas e por aí afora. E tome folha de erva-cidreira, capim santo, manjericão, endro, semente de coentro, em pratos que terminam adquirindo um sabor abominável. Tudo simulando sofisticação e requinte. E as tapiocas? As iguarias que herdamos dos nossos antepassados indígenas tornaram-se o laboratório das mais abomináveis misturas. Ficaram piores do que os crepes franceses servidos nos casamentos.
Existe uma ambiguidade em relação ao passado. As pessoas temem que as julguem conservadoras, se demonstram algum apego à tradição. Tenho plena consciência dos benefícios da modernidade e não creio que no passado as coisas fossem bem melhores do que as atuais. Não se trata disso, embora reconheça que há um favorecimento dos jovens e certa tirania contra os idosos.
O que é antigo não precisa ser deformado e assim parecer contemporâneo. Sobretudo na culinária chamada de arte, porque ela possui fórmulas testadas, que passaram de geração a geração. Nessa recusa à tradição botaram catupiry no baião-de-dois, maionese na tapioca e calabresa na paçoca. É verdade que foi misturando que chegamos aos grandes inventos culinários, como a feijoada. Mas, uma vez experimentado e aprovado, vamos deixar algumas receitas como faziam nossas avós. O baião-de-dois, por exemplo.
Crônica publicada originalmente na Revista Continente #192
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