11 jan Viva o telefone celular!
Os familiares de um paciente com pneumonia estranharam quando o médico informou que a única opção para ele seria ficar sentado numa cadeira, no corredor da emergência, enquanto era medicado e aguardava que desocupasse um leito. Há poucos meses ele deixara de pagar o seguro saúde, sua empresa de construção falira e, sem outra escolha, teve de recorrer a um hospital público.
No tempo em que a esposa acomodava o enfermo na cadeira, a filha consumia as pontas dos dedos no teclado do celular. Ligava para todos os conhecidos influentes: o tio, ex-deputado estadual e ex-secretário de governo; uma prima médica oncologista; o namorado fisioterapeuta. Implorava, como se implora aos santos, que a ajudassem a tirar o pai daquele lugar asqueroso.
A moça de classe média desconhecia que uma emergência pública era o caos em que ela se metera, não aceitava que seu pai recebesse tratamento em meio àquela gente miserável, mas não dispunha de dinheiro para arcar com os elevados custos de um hospital privado. O enfermo reclamava do desconforto e se queixava de febre, dores nas costas e cansaço.
O médico explicou pela décima vez que não havia disponibilidade de leitos, nem mesmo macas de ferro sem colchonete, e lamentou só poder oferecer uma cadeira. Olhou em volta desanimado, reconheceu o cenário por onde se movimentava em dois plantões semanais a troco de um baixo salário: o corredor onde se apinhavam dezenas de pacientes, pessoas com variados tipos de doenças, homens, mulheres, jovens e velhos. Ninguém sofria menos que o engenheiro ex-rico, mas ninguém protestava.
Atletas se submetem a testes de resistência física e psicológica durante os treinos que antecedem os campeonatos. Há algum tempo, o bicampeão olímpico de canoagem não resistiu aos treinos e morreu. Quando as eleições se aproximam, imagino que os nossos candidatos deveriam submeter-se a um teste de sobrevivência dentro de um hospital público, no lugar de paciente, em meio à massa de sofredores que a filha do engenheiro não reconheceu como seus semelhantes. Apenas uma semana, sete dias num desses corredores da morte seria bastante ao candidato. Ou ele abriria os olhos para a realidade da saúde (o mais correto seria escrever doença) em nosso país, ou os fecharia para sempre, morto, é claro.
Nas enfermarias improvisadas, as luzes nunca se apagam e há um barulho permanente, uma contínua circulação de médicos, enfermeiras, técnicos, maqueiros, serventes, soldados, vigilantes, novos pacientes e seus acompanhantes. Ninguém descansa na estação do inferno. Algumas pessoas perdem a noção de tempo e espaço e entram em surto psicótico. Não há padronização de enfermidades nos corredores de guerra. Um paciente com infecção na vesícula biliar fica ao lado de um portador de tuberculose ou hepatite. Enquanto aguarda o resultado de um exame, o paciente com doença mais leve presencia o espetáculo dos alcoólatras em síndrome de abstinência, convulsionando amarrados nas macas de ferro, vez por outra desabando no chão e sofrendo traumatismos.
O ar desses corredores é infecto, os funcionários usam máscaras, que não os protegem de nada. Médicos, enfermeiras e pessoal técnico contraem tuberculose com frequência e se contaminam com doenças graves. Muitas vezes sofrem distúrbios mentais por não aguentarem o contínuo estresse: depressão, ansiedade, angústia, insônia, fobias. Insisto, mais uma vez: os políticos precisam passar por um internamento numa emergência de hospital público. Depois de sete dias, talvez pensem antes de fazer as maracutaias e botar a mão no dinheiro que não é deles, nem de seus partidos. E cuidem em tornar salubres os nossos hospitais.
Mas é otimismo demais desejar isso. Acostumados a serem massacrados, os usuários do nosso sistema de saúde, o SUS (que seria modelo se funcionasse corretamente), nunca protestam ou se insurgem. Nenhuma Revolução Francesa, nenhuma tomada da Bastilha. Os movimentos nunca são coletivos, jamais politizados. Quando acontecem, consistem em atos de vandalismo, em depredações e roubos. Nenhum gesto de consciência e de direito. Todos aceitam ser cronicamente maltratados, da mesma maneira que aceitam a corrupção.
O cliente de classe média recorre aos velhos métodos brasileiros: as vias indiretas do apadrinhamento. Algumas horas depois de sua chegada à Emergência, nosso engenheiro recebe a visita de um administrador. Sob os olhares de pacientes que esperam uma vaga há mais de trinta dias, ele é internado numa enfermaria especializada.
E ainda dizem que a telefonia celular brasileira não funciona.
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