26 abr Ah, se todas as guerras fossem nos gramados de futebol!
A cena é exuberante, mesmo sendo um prólogo de morte. De um lado do campo, homens vestidos de azul, do outro lado, os uniformes vermelhos. Tocam fanfarras e hinos patrióticos antes que os dois lados se atraquem e lutem, e um seja vencedor e o outro vencido. Há hierarquias no grupo, estratégias de luta, complicados desenhos de avanços e recuos. Chefes comandam de longe, os guerreiros obedecem. Para cada destacamento, um nome, um espaço delimitado. Assim era a guerra. Um permanente movimento de choque entre soldados, engrenagens, cavalos, armas, indumentárias, bandeiras e cores. Alexandre, Saladino ou Gêngis Khan acreditaram na guerra como fonte de alegria e bem estar. De forma idealizada ela seria a destruição do mal, o restabelecimento da paz, da justiça e da harmonia. Seria, mas nunca o foi.
Os guerreiros de hoje não se medem nas habilidades físicas, no manejo de espadas e arcos. A tecnologia possibilitou novos confrontos. Guerras frias, cibernéticas. O inimigo não encara o rosto do rival, não toca seu corpo, não molha as mãos no seu sangue. Ninguém imagina um tempo em que os heróis declamavam os nomes e os antepassados, antes de se engalfinharem no combate. Se o rival não estivesse à altura do contendor, ele o desprezava e saía à procura de outro com igual porte e nobreza.
Por esses dias, assistindo jogos na televisão, imaginei que o homem encontrou no futebol um sucedâneo para a guerra. O gramado representa o campo de batalha. Entram guerreiros em fila. São jogadores de diferentes nações. Ouvem-se gritos, fogos, músicas. As bandas tocam os hinos de cada país. Mãos elevam-se ao peito, olhos se erguem ao céu, cheios de lágrimas. Nacionalismos afloram. As cores rivais enchem as arquibancadas. Bandeiras tremulam por todos os cantos.
A partida começa, os jogadores guerreiros se enfrentam, brigam pela posse real de uma bola simbólica. Com ela, desejam furar a muralha de rede inimiga. Correm, suam, se atropelam. Nessa guerra arbitrada por juízes, se um inimigo machuca o outro, sofre punição. Valem as habilidades, as estratégias, os ardis. Nunca a violência.
A torcida estimula os soldados, grita, canta, aplaude. Pequenos hinos de guerra são entoados. Ao lado do campo, outros guerreiros esperam a vez de entrar na luta, no lugar dos companheiros contundidos, cansados, ou que não se mostraram habilidosos com a bola. Os comandantes orientam de longe, gesticulam, rememoram estratégias.
Desfile de cores, máscaras, rostos pintados, fantasias e adereços. Os torcedores, mais numerosos que os atletas, acompanham os soldados onde eles vão lutar. Um acampamento móvel, em eterno périplo. Várias batalhas acontecem ao mesmo tempo, no gramado, nas arquibancadas, na frente das televisões. Os campos se estendem pelo mundo afora, infinitos, milhões de telas.
O gramado é o espaço democrático onde nações poderosas competem de igual para igual com pequenos países. Em que antigos colonizadores enfrentam seus colonizados, e podem sofrer derrotas. As raças se misturam. A vitória não pertence a um time que maneja armas de alta tecnologia. As armas são os atletas, seus corpos e mentes, suas habilidades. Ficamos tentados a acreditar que de verdade lutam pelos ideais de que falam os hinos, cheios de céu estrelado, florestas verdejantes, guerreiros audazes, arroubo e vontade de amar e morrer.
Ah! Essa guerra democrática e pacífica! Nela supostamente não existem diferenças entre negros e brancos, pobres e ricos, cristãos e muçulmanos! Se fosse possível resolver as querelas do planeta, correndo atrás de uma bola, num gramado verdejante! Mas nem sempre é assim, apenas nos campeonatos vemos ensaios de fraterna convivência. No tempo restante, são outros jogadores que se digladiam por seus países, fazendo prevalecer a força e o poder econômico.
E nesse jogo desigual, não se enganem, Europa é Europa, Ásia é Ásia, África é África. Estados Unidos não bate bola com Irã, nem Coréia do Norte, nem Rússia… Mesmo que ensaie jogos amistosos.
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