No trânsito | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Continente

No trânsito

Que maravilha, uma visita desejada! O amigo resolve aparecer de repente, depois de anos de ausência. Mal recebemos o anúncio de que está para chegar e já começam os preparativos: arrumamos o quarto, forramos a cama com os melhores lençóis, fazemos as compras de supermercado pensando no que mais agrada, abarrotamos a geladeira e o freezer, esboçamos uma agenda de passeios e até consultamos a previsão do tempo.

No dia, bem antes da hora, me junto ao círculo de pessoas que esperam no desembarque do aeroporto. O riso se escancara, os braços são poucos para tantos abraços. Em meio às perguntas nem escuto as respostas. O que vale é a excitação, o reboliço das falas, os olhares para descobrir o que mudou na pessoa, a pressa em revelar em poucos minutos a programação de quinze dias.

Empurrando a pequena bagagem, entramos na fila de pagar o estacionamento. Tudo se resolve ligeiro, os carros param ao atravessarmos a pista, quase comento que vivemos num mundo civilizado, mas silencio. O primeiro contratempo: esqueço o piso onde estacionei o carro e também não anotei se na fila B, J, C… Peço desculpa e atribuo o lapso à ansiedade pelo reencontro. Não me arrisco a confessar que sou especialista nesses desleixos.

Espere aqui. Chego em dois minutos.

Subo, desço, me desespero, aperto mil vezes o controle que faz abrir as portas, desejando ouvir um barulho conhecido e ver o pisca acender. Depois de meia hora, encosto o carro em frente ao amigo, desço e ajudo a acomodar a minguada bagagem no porta-malas.

Mil perdões, encontrei um paciente. Pense num cara complicado. Tive de receitá-lo aqui mesmo. Sabe como é médico, todo mundo acredita que vivemos de plantão, minto sem pudor.

Começa o segundo round da visita. Nesse primeiro convício foram aparadas arestas, outras surgiram, descobre-se que ele já não come carne, prefere vegetais, e apenas duas vezes na semana se arrisca num peixe. Que já não se interessa por literatura contemporânea, lê os filósofos, escuta música barroca e precisa de um tempo diário para a meditação. No carro, você se lembra de cancelar o passeio no catamarã pela Praia de Carneiros, ele não irá apreciar o forró que toca a bordo. Chega na ponta da língua a vontade de saber se ele ainda consome uma caipirinha e fuma um baseado, mas não me arrisco a tanto. Melhor ficar quieto.

A visita comenta o quanto a cidade mudou nesses anos, destruíram o patrimônio arquitetônico, isso nunca aconteceria numa cidade européia como Paris – cita logo que cidade! –, mas é comum de acontecer no terceiro mundo. Engulo em seco, odeio a classificação de primeiro e terceiro mundo, odeio quem fala “é coisa de cinema”. Sinto ganas de perguntar o que ele veio fazer no terceiro mundo, voando na classe econômica. Deixo por menos, somos amigos, estudamos juntos até a formatura, ele vive fora do Brasil, ralou para garantir um bom emprego na França e o luxo de morar em quarenta metros quadrados, num bairro razoável de Paris. Logo que cidade!

O trânsito não flui, há fortes chances de consumirmos duas horas do aeroporto ao nosso apartamento em Casa Forte, falo pelos cotovelos, procuro distrair o colega do tumulto na pista.

É sempre assim?
Não!, me apresso em mentir novamente. Alguma coisa muito grave aconteceu. Talvez um acidente fatal ou um protesto.

Várias motos ziguezagueiam entre os carros parados, uma delas quase leva o retrovisor lateral junto a mim. Avanço dois metros, descuido e caio num buraco. Por bem pouco não estoura um pneu.

O que foi isso?
Um desnível na pista, eu acho. Minto pela terceira vez. Ai meu São Pedro Chaveiro! O asfalto que vendem ao Brasil não é o mesmo que vendem à França.
Será verdade?
Dizem.
Li que a turma do Ministério dos Transportes embolsa uma parte do dinheiro e compra asfalto de terceira.

Corrupção? De novo? Não basta o que mostram na TV? A alegria e o ímpeto do reencontro dão sinais de acabrunhamento. Bem que a mulher havia sugerido acomodar a visita um hotel de preço médio, num lugar tranquilo e silencioso. Onde? Existe lugar tranquilo e silencioso no Recife? Tenho convicção de que não existe, mas caso ele se atreva a insinuar isso, abro a porta do carro e peço que desça ali mesmo, debaixo de um viaduto onde se arrancham alguns sem teto.

Camus comparou Recife a Florença, quando se hospedou aqui, em 1949. Ele estava com febre ou talvez delirasse, comenta irônico.
Antigamente, o Recife parecia mesmo com Florença, embora o poeta João Cabral o comparasse a Sevilha.
A Sevilha? Pensando bem, talvez o calor insuportável seja igual.
Por que debocha?
Por nada. Vocês nunca perdem a mania de grandeza. Ainda acreditam que os rios Capibaribe e Beberibe se juntam para formar o Atlântico?

O trânsito para de vez. Quinhentos metros à frente atearam fogo em pneus e uma coluna de fumaça preta sobe à procura do céu. Os amigos levantam a cabeça, perscrutando o futuro. No final de tarde, já se avista no poente um risco de lua e uma estrela. Por sorte, a fumaça não encobriu os astros. Os dois aproveitam e olham.

*ilustração Maria Júlia Moreira
Revista Continente

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