10 maio No trânsito
Que maravilha, uma visita desejada! O amigo resolve aparecer de repente, depois de anos de ausência. Mal recebemos o anúncio de que está para chegar e já começam os preparativos: arrumamos o quarto, forramos a cama com os melhores lençóis, fazemos as compras de supermercado pensando no que mais agrada, abarrotamos a geladeira e o freezer, esboçamos uma agenda de passeios e até consultamos a previsão do tempo.
No dia, bem antes da hora, me junto ao círculo de pessoas que esperam no desembarque do aeroporto. O riso se escancara, os braços são poucos para tantos abraços. Em meio às perguntas nem escuto as respostas. O que vale é a excitação, o reboliço das falas, os olhares para descobrir o que mudou na pessoa, a pressa em revelar em poucos minutos a programação de quinze dias.
Empurrando a pequena bagagem, entramos na fila de pagar o estacionamento. Tudo se resolve ligeiro, os carros param ao atravessarmos a pista, quase comento que vivemos num mundo civilizado, mas silencio. O primeiro contratempo: esqueço o piso onde estacionei o carro e também não anotei se na fila B, J, C… Peço desculpa e atribuo o lapso à ansiedade pelo reencontro. Não me arrisco a confessar que sou especialista nesses desleixos.
– Espere aqui. Chego em dois minutos.
Subo, desço, me desespero, aperto mil vezes o controle que faz abrir as portas, desejando ouvir um barulho conhecido e ver o pisca acender. Depois de meia hora, encosto o carro em frente ao amigo, desço e ajudo a acomodar a minguada bagagem no porta-malas.
– Mil perdões, encontrei um paciente. Pense num cara complicado. Tive de receitá-lo aqui mesmo. Sabe como é médico, todo mundo acredita que vivemos de plantão, minto sem pudor.
Começa o segundo round da visita. Nesse primeiro convício foram aparadas arestas, outras surgiram, descobre-se que ele já não come carne, prefere vegetais, e apenas duas vezes na semana se arrisca num peixe. Que já não se interessa por literatura contemporânea, lê os filósofos, escuta música barroca e precisa de um tempo diário para a meditação. No carro, você se lembra de cancelar o passeio no catamarã pela Praia de Carneiros, ele não irá apreciar o forró que toca a bordo. Chega na ponta da língua a vontade de saber se ele ainda consome uma caipirinha e fuma um baseado, mas não me arrisco a tanto. Melhor ficar quieto.
A visita comenta o quanto a cidade mudou nesses anos, destruíram o patrimônio arquitetônico, isso nunca aconteceria numa cidade européia como Paris – cita logo que cidade! –, mas é comum de acontecer no terceiro mundo. Engulo em seco, odeio a classificação de primeiro e terceiro mundo, odeio quem fala “é coisa de cinema”. Sinto ganas de perguntar o que ele veio fazer no terceiro mundo, voando na classe econômica. Deixo por menos, somos amigos, estudamos juntos até a formatura, ele vive fora do Brasil, ralou para garantir um bom emprego na França e o luxo de morar em quarenta metros quadrados, num bairro razoável de Paris. Logo que cidade!
O trânsito não flui, há fortes chances de consumirmos duas horas do aeroporto ao nosso apartamento em Casa Forte, falo pelos cotovelos, procuro distrair o colega do tumulto na pista.
– É sempre assim?
– Não!, me apresso em mentir novamente. Alguma coisa muito grave aconteceu. Talvez um acidente fatal ou um protesto.
Várias motos ziguezagueiam entre os carros parados, uma delas quase leva o retrovisor lateral junto a mim. Avanço dois metros, descuido e caio num buraco. Por bem pouco não estoura um pneu.
– O que foi isso?
– Um desnível na pista, eu acho. Minto pela terceira vez. Ai meu São Pedro Chaveiro! O asfalto que vendem ao Brasil não é o mesmo que vendem à França.
– Será verdade?
– Dizem.
– Li que a turma do Ministério dos Transportes embolsa uma parte do dinheiro e compra asfalto de terceira.
Corrupção? De novo? Não basta o que mostram na TV? A alegria e o ímpeto do reencontro dão sinais de acabrunhamento. Bem que a mulher havia sugerido acomodar a visita um hotel de preço médio, num lugar tranquilo e silencioso. Onde? Existe lugar tranquilo e silencioso no Recife? Tenho convicção de que não existe, mas caso ele se atreva a insinuar isso, abro a porta do carro e peço que desça ali mesmo, debaixo de um viaduto onde se arrancham alguns sem teto.
– Camus comparou Recife a Florença, quando se hospedou aqui, em 1949. Ele estava com febre ou talvez delirasse, comenta irônico.
– Antigamente, o Recife parecia mesmo com Florença, embora o poeta João Cabral o comparasse a Sevilha.
– A Sevilha? Pensando bem, talvez o calor insuportável seja igual.
– Por que debocha?
– Por nada. Vocês nunca perdem a mania de grandeza. Ainda acreditam que os rios Capibaribe e Beberibe se juntam para formar o Atlântico?
O trânsito para de vez. Quinhentos metros à frente atearam fogo em pneus e uma coluna de fumaça preta sobe à procura do céu. Os amigos levantam a cabeça, perscrutando o futuro. No final de tarde, já se avista no poente um risco de lua e uma estrela. Por sorte, a fumaça não encobriu os astros. Os dois aproveitam e olham.
*ilustração Maria Júlia Moreira
Revista Continente
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