Crônica tirada de uma enfermaria de hospital
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Ilustração: Maria Julia Moreira

Crônica tirada de uma enfermaria de hospital

Lucas tinha 22 anos quando veio do presídio para cuidar de um ferimento no pé. Durante uma rebelião de detentos ele se machucou, não recebeu atenção médica e a infecção ganhou os ossos. Ao vê-lo, ninguém apostaria tratar-se do mesmo garoto que, aos dezoito anos, foi flagrado com vinte e uma pedras de crack. Em quatro anos, emagrecera mais de trinta quilos. O retrato de admissão no presídio parecia de outra pessoa. Os olhos perderam o brilho e a vontade. Lucas carregava o corpo e a condenação sem julgamento.

Desde os dezessete anos se metera no tráfico, consumindo e disputando territórios de venda entre os grupos rivais, numa cidade da Zona da Mata Sul de Pernambuco, onde a monocultura da cana e o legado da escravidão condenaram as pessoas à violência e à miséria. Num tiroteio de facções, uma bala atingiu a bexiga de Lucas e ele perdeu o controle sobre a vontade de urinar. Caminhava normalmente, mas fazia uso de fraldas descartáveis. Preso numa unidade ressocializadora, voltou para casa, ao consumo e ao tráfico, depois de meses. Nunca conhecera o pai. A mãe o acolhia como se ele fosse um castigo de Deus. No tempo em que ficou internado, ela o visitava com resignação e apatia. Deixava folhetos contendo a Palavra, colava alguns nos azulejos da enfermaria e cantava hinos com as mãos erguidas para o alto. Numa das visitas, trouxe o pastor da igreja evangélica que costumava frequentar, pagando um dízimo mensal de dez por cento do salário.

Isolado por causa da bactéria que destruía o pé e a perna, Lucas não aceitava a comida e emagrecia visivelmente. Chamaram o médico clínico para assumir o caso e diagnosticou-se tuberculose no pulmão, em estágio bem avançado. Começaram um novo tratamento e pediram que Lucas usasse máscara para não contaminar as pessoas. Vigiado por dois agentes penitenciários, dia e noite, seu isolamento tornou-se maior, a tristeza um miasma sombrio como o dos mangues onde ele crescera entre os caranguejos. As bactérias e os bacilos minavam sua vida em decomposição. No dia em que o médico revelou a tuberculose, Lucas não tremeu. Mas quando lhe disse que o teste para AIDS havia sido negativo, os olhos do rapaz se encheram de lágrimas, ele fez um sinal da cruz atrapalhado e agradeceu a boa notícia.

Dois garotos de dezessete anos se internaram com várias fraturas. Presos durante uma perseguição policial, fugiam em um carro roubado. O veículo capotou algumas vezes, sem matar ninguém. Quatro militares vigiavam os menores, além dos dois agentes civis responsáveis por Lucas. O clima nas enfermarias tornou-se igual ao das prisões, tumultuado e explosivo, com armas expostas, prontas a disparar. As fardas, os coletes à prova de bala, os revólveres e fuzis se misturavam aos ingredientes hospitalares: gritos, gemidos, sangue, fezes e pus. Os policiais cuidavam para os novos detentos não fugirem, nem serem resgatados por suas quadrilhas. Nervosos e agressivos, mantinham-se em permanente estado de alerta. Os garotos pareciam inofensivos e alheios ao futuro sombrio. Algemados nas camas de ferro, não aparentavam a alta periculosidade descrita no laudo pericial, nem a criminalidade dos currículos.

Novos presos chegaram às enfermarias, com guarnições de mais quatro homens, estabelecendo-se uma atmosfera de front. Os médicos assistiam os detentos com indiferença pelos seus dramas, numa tentativa de se protegerem, diziam. Não perguntavam por suas histórias, limitando-se a examinar as fraturas e feridas. Os policiais queriam que todos eles morressem, pois se tratava de bandidos irrecuperáveis para a sociedade, segundo proclamavam aos berros, nos corredores do hospital. A violência das ruas se reproduzia no espaço sagrado de cura, com os mesmos ingredientes de ódio e indiferença. De um lado, prisioneiros considerados bandidos, no lugar de pacientes. Do outro, policiais armados, esperando uma chance de agir. E no meio desse fogo cruzado, a equipe de saúde tentando salvar as vidas, que a maioria preferia mortas.

Lucas já não contaminava as pessoas com a tuberculose e foi transferido do isolamento para a enfermaria dos jovens delinquentes. Controladas as bactérias, ele não tinha chances de recuperar a função do pé e da perna, pois os ossos haviam sido destruídos. No dia em que o informaram sobre a amputação acima do joelho, ele não manifestou revolta. Aos vinte e dois anos, acostumara-se ao destino de sequelado.

Um agente penitenciário chamava atenção por ficar a maior parte do tempo estudando. Formado em direito, queria especializar-se na recuperação de menores criminosos. Lia bons livros, parecia diferente dos colegas que falavam alto, diziam palavrões e se envolviam em namoros com as acompanhantes. Quando o médico clínico comunicou o retorno de Lucas ao presídio de origem, onde ele aguardava julgamento há quatro anos pelo tráfico das vinte e uma pedras de crack, o agente falou o mesmo que os policiais militares: melhor se tivesse morrido. Não existia nenhum futuro para Lucas. Solto ou na prisão continuaria se drogando. O médico se manteve em silêncio, talvez achasse que não havia recuperação para o agente, por mais que lesse a melhor literatura. Deu as orientações de alta, despediu-se de Lucas e desejou-lhe boa sorte.

No dia seguinte, escutou-se um tumulto no posto de enfermagem. O clínico reclamava que não tinham enviadas as orientações sobre o tratamento da tuberculose, que deveria continuar por mais cinco meses. Descontrolado, gritava com a equipe. Queria saber se havia ocorrido desleixo ou boicote. Telefonou ao presídio e solicitou que o serviço social viesse apanhar o resumo de alta e as prescrições. Uma enfermeira chegou perto do médico, pediu calma e cochichou alguma coisa, que ninguém ouviu.

Desleixo, boicote, que diferença faz? A vida custa barato no rateio dessa gente miserável, vale quase nada, menos que a barganha de Judas.

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