A medicina e a pulga paralítica | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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A medicina e a pulga paralítica

Um amigo baleado por assaltantes foi socorrido na emergência do Hospital da Restauração. Como sou médico, os familiares ligaram para mim, pedindo que eu fosse vê-lo. Cheguei rápido, mas todas as providências já haviam sido tomadas: exame clínico, radiografias, medicação, curativos. A bala passou ao lado de artérias e vísceras, mas, felizmente, saiu sem causar maiores estragos.

Afirmam que o melhor lugar para socorrer traumatizados é uma emergência de hospital público, embora todas pareçam uma praça de guerra. Boxes e corredores estão cheios de macas, colchões e papelões servindo de camas. Os pacientes e familiares se amontoam esperando a evolução da doença, exames complementares, cirurgia ou transferência para outro hospital. Gritos, gemidos, mau cheiro, desconforto e lâmpadas acesas no rosto criam a sensação de uma câmara de tortura. Alguns permanecem muitos dias nesse ambiente insalubre, e ao saírem ficam transtornados, em surto psicótico.

Não são apenas os pacientes que sofrem. Médicos, enfermeiras e técnicos, por mais habituados que estejam ao convívio com a dor, trabalham no limite do stress. As estatísticas mostram índices elevados  de alcoolismo, uso de drogas, doenças psiquiátricas e suicídio entre os médicos, em conseqüência de jornadas de trabalho excessivas, péssima remuneração e frustrações com o exercício da profissão. Bastam algumas horas dentro de uma emergência geral para constatar a dura realidade.

Admiro os médicos que dão o máximo de si mesmos para minorar a dor dos que sofrem. Há neles uma humanidade semelhante à dos heróis que desprezam o perigo, arriscando a vida para salvar o semelhante. Mas, a medicina praticada pela maioria dos médicos sofre de um orgulho desmedido, uma fé excessiva na técnica. Não farei ataques à razão e à técnica. Técnica para mim continua sendo téchnikós, que significa relativo à arte.

Questiono o modelo de medicina baseado numa razão infalível, que subestima a ética, a cultura e a subjetividade do paciente. No trato com as populações mais pobres, a medicina lembra os colonizadores que invadem nações, consideram os povos dominados inferiores, rejeitam sua cultura, os valores sedimentados durante séculos. No Brasil, somos formados por vários estratos de civilização e cultura, alguns povos ainda vivem no neolítico, como os índios Ianomâmis.

Existe uma maneira de substituir o som do maracá numa pajelança, pelo ruído do aparelho de ressonância magnética, sem causar perdas? Trocar uma magia por outra, sem afirmar a supremacia do nosso conhecimento, o poder da medicina contra a fumaça do cachimbo do pajé. Para isso falta-nos humildade. E somos castigados pela hybris, a arrogância do saber absoluto. Ao mesmo tempo em que avançamos nas mais sofisticadas tecnologias de investigação e tratamento, nosso povo sofre os males do subdesenvolvimento: fome, violência, analfabetismo e doenças de veiculação hídrica, pela ausência de saneamento básico.

O culto ao diagnóstico tornou-se uma obsessão. Interessa agir como um detetive, revirar as entranhas de quem sofre, chegar a um dos números do Código Internacional de Doenças. É a lógica científica, quase sempre absurda. Como no relato de Jean-Claude Carrière, em O Círculo dos Mentirosos.

Um cientista examina uma pulga que veio se instalar perto dele. Ele lhe ordena: “Pule!”, e a pulga pula. O cientista escreve numa folha de papel: “Quando dizemos a uma pulga para pular, ela pula”. Então, ele pega a pulga e arranca, cuidadosamente, as suas patas. Coloca-a perto dele e ordena: “Pule!”. A pulga não se mexe. O cientista anota na folha de papel: “Quando arrancamos as patas de uma pulga, ela fica surda”.

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