29 nov O Baile nunca termina
Depois de repetir-se muitas vezes, até uma mentira, desde que não tenha pernas curtas, se torna verdade. Habituei-me a dizer em entrevistas que Antonio Madureira, Assis Lima e eu nos queixávamos da invasão de renas, Jingle Bells e neve falsa no Natal brasileiro, e resolvemos criar uma brincadeira para nossos filhos cantarem e representarem durante o ciclo natalino. Tivéramos a sorte de viver em meio a reisados, lapinhas e bois, a herança do Natal ibérico assimilada no nordeste do Brasil pelas populações rurais e urbanas, incorporada às culturas índia e negra.
A conversa poderá ter sido essa, mas tudo nasceu de um esboço de representação teatral, ao estilo dos autos e dramas populares de empanada, que Assis Lima mandou de São Paulo para mim, pedindo que eu encenasse com minhas irmãs, num Natal do Crato. Esse arcabouço poético existiu, eu o guardo com carinho. Madureira havia composto a música de Lua Cambará, o primeiro e talvez único filme longa metragem brasileiro na bitola super 8, que realizamos nos anos de 1975, 76 e 77, com Horácio Carelli Mendes, uma aventura de malucos, típica da contracultura. Do convívio com Madureira, um músico aclamado por seu trabalho à frente do Quinteto Armorial, ficou o desejo de uma nova parceria.
Em 81, começamos a entregar a Zoca as letras do futuro Baile do Menino Deus. Sem internet, nem skype, nem WhatsApp, com ligações telefônicas caras e precárias, a comunicação com Assis era feita pelo correio. Zoca tocava para eu ouvir as primeiras criações musicais e Assis, longe em São Paulo, apenas sonhava.
Decidimos juntar às nove composições em parceria, três peças de reisado, com escrita e arranjos nossos: Jaraguá, Burrinha e Boi. Tínhamos doze músicas, o bastante para um long-play. Zoca terminara de gravar Brincadeiras de roda, estórias e canções de ninar, na Eldorado, dirigida por Aluízio Falcão, que trabalhara com Marcus Pereira. Nosso desejo era fazer o Baile pelo mesmo selo. Alugamos o Studio do Conservatório Pernambucano e, com a ajuda de músicos e cantores amigos, gravamos uma fita modesta, com a intenção de mostrá-la na Eldorado. Zoca conseguiu a produção, mas tivemos de gravar tudo em Recife, no velho e decadente Studio Rozenblit, com apenas oito canais.
Enquanto isso, Assis e eu aprontávamos o texto teatral. Em novembro de 83, lançamos na loja Trupizupe de Germano Haiut, no Shopping Recife, o nosso Baile do Menino Deus. A produção estourou os gastos e creio que Zoca ficou no vermelho. Mas o prejuízo não impediu de sonharmos com uma Trilogia das Festas Brasileiras, que se completou com Bandeira de São João e Arlequim de Carnaval.
Procurei José Mário Austregésilo, da Praxis Dramática, e apresentei o Baile. Nesse tempo não existiam leis de incentivo à cultura. Os produtores corriam o risco da encenação, os teatros lotavam e havia até quem ganhasse dinheiro. A Praxis aceitou o desafio, tínhamos apenas um mês para montar o espetáculo e ainda faltava escolher o diretor. José Mário propôs que eu dirigisse. Da noite para o dia, fui investido no papel de encenador. No mesmo novembro de 83, com o Teatro Waldemar de Oliveira lotado estreou o Baile. Ao final, as pessoas choravam comovidas, se abraçavam felizes como numa celebração.
Essa primeira montagem ficou sete anos e meio em cartaz sem modificar o elenco, a não ser as crianças, que se tornaram adultas. Havia interrupções e mudanças de teatro, mas o público se mantinha fiel. Algumas famílias compareciam tantas vezes, que Zé Mário ofereceu ingresso livre a elas. O Baile colecionou histórias incríveis nos seus trinta e quatro anos Brasil afora, representado pelos mais variados grupos.
Vou contar apenas uma. Chego com a família na cidade de São José da Coroa Grande, no mês de dezembro, para a temporada de praia. Encontramos a cidade cheia de faixas anunciando o Baile do Menino Deus. Meus filhos pequenos me perguntam se eu dera o consentimento. Digo que não. Querem saber se pode. Respondo que o Baile tornou-se de domínio público com os autores vivos e que se fosse nos Estados Unidos estaríamos milionários. Eles lamentam o prejuízo e combinamos ver a montagem. De noite, num salão improvisado em teatro, entramos com jeito de criminosos, depois de pagar os ingressos. Quando o Mateus entra e grita o ‘boca de forno’, me vê no meio da plateia, me reconhece, perde a fala e bota para tremer. Eu dou boa gargalhada, ele relaxa e o espetáculo prossegue.
Juro, embora eu tenha fama de ‘verdadeiro’ mentiroso, que não dá para saber as centenas de encenações do Baile. Em 96, a editora Bagaço publicou o texto adaptado para prosa, com ilustrações de Rosinha, que ficou 15 anos em catálogo. A editora Objetiva vendeu ao Programa Nacional Biblioteca Escolar quase meio milhão de um livrinho bem modesto, com o texto teatral completo. Depois fez uma edição de luxo, publicada pela Alfaguara e que, neste ano de 2017, saiu pela Companhia das Letrinhas. Graças a esse número extraordinário, o Baile foi distribuído por muitas escolas do Brasil e as encenações se multiplicaram. Infelizmente, para os nossos bolsos, as montagens nunca têm fim lucrativo.
O Baile completará 34 anos de vida e 14 anos na Praça do Marco Zero – uma produção arrojada da Relicário, tendo Carla Valença à frente. O Baile tornou-se o ‘marco’ natalino do Recife e de Pernambuco, um ritual sagrado e profano, alegre e comovente, um bem coletivo das milhares e milhares de pessoas que o assistem todo ano.
A fala do Mateus, fechando a encenação, garante que O Baile será eterno:
Senhores donos da casa,
Jesus, José e Maria,
o baile aqui não termina,
o baile aqui principia
do mesmo jeito que o sol
se renova a cada dia,
da mesma forma que a lua
quatro vezes se recria,
do mesmo tanto que a estrela
repassa a rota e nos guia.
Ronaldo Correia de Brito
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