Nacionalismo e Culpa | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Nacionalismo e Culpa

Pouco tempo antes de iniciar o seu trabalho com o Centro Internacional de Pesquisa Teatral, Peter Brook ainda se fazia estas perguntas: Por que fazer teatro? O que é uma palavra escrita? O que é uma palavra falada? Brook havia se determinado, junto com o seu grupo de atores de diversas nacionalidades, a desaprender tudo o que era certeza no teatro e tatear o caminho de uma nova linguagem. Ele não desconhecia os enganos da palavra “experimental” e sabia que a oposição entre experimental e tradicional era um artifício.

Peter Brook, um autodidata que começou a dirigir cinema e teatro aos dezenove anos, sem nunca antes ter assistido a um ensaio, era inglês, filho de judeus russos, com um rico lastro da cultura britânica. O teatro burguês feito na Inglaterra, o próprio teatro shakespeariano de então, pouco tinha do “questionamento apaixonado sobre a experiência individual e social e seu sentido metafísico de terror e espanto”, característico da era elisabetana. Mas  era possível a Peter Brook, na Europa do pós-guerra, o permanente intercâmbio com os novos experimentos e as tradições. Livre de qualquer censura ou preconceito, aberto às loucuras de Dali e Genet, Brook nunca mencionou o sentimento de traição a esta ou aquela cultura. Não há um único relato seu em que afirme estar criando o “verdadeiro teatro inglês”. Brook cria para a humanidade, sem ranços de nacionalismo.

Jorge Luis Borges negava a importância de qualquer outra cultura, além da européia, na formação Argentina. Embora falasse e escrevesse em espanhol, considerava o inglês sua língua de eleição. Poucos escritores sentem-se tão à vontade no uso dos motivos universais. Discerne sobre religiões e mitos do mundo, como se tivesse sido iniciado neles, desde a infância. Surpreendente, é que não se escuta a fala deste ou daquele povo, nos seus escritos. É sempre Borges quem fala. Vez por outra, a sombra de um subúrbio de Buenos Aires, ou um punhal manejado por um tropeiro do Norte nos revelam a geografia argentina. Mas são cenários armados, podendo ser Tebas, Jerusalém ou Cartago. O que importa para ele é a grandeza ou a pequenez do homem de qualquer lugar.

Parecerá estranho que um escritor tão à vontade em transitar por todas as culturas tivesse um tema obsessivo, o do livro representativo de cada povo. A Ilíada e a Odisséia seriam os poemas da Grécia; O Quixote, o romance da Espanha; A Divina Comédia, o maior escrito do povo italiano; O Orlando de Ariosto, o épico dos franceses; e assim por diante. Teria Borges, artífice de contos e poemas, a veleidade de ter escrito a maior literatura do povo argentino? Seria de estranhar, para um homem que gostaria de escrever em inglês e elegeu Genebra como a sua pátria, onde foi enterrado. Ou este é mais um dos seus paradoxos? Não tenho a resposta para a pergunta, como Borges nunca teve resposta para outra de suas dúvidas torturantes: seus livros seriam esquecidos? Mas este não é o tema fundamental das nossas divagações.

Queremos falar de culpa, não no sentido psicanalítico da relação pai-filho, mas a culpa como sentimento de infidelidade na criação. Quando escreve, a quem deve fidelidade o autor? E voltamos a Borges, no seu encontro com Guimarães Rosa, num congresso de literatura. Acho que li esse relato numa entrevista que Guimarães concedeu a um tradutor alemão, e que é uma das mais famosas. Se for imaginação minha, fica como mais uma das mentiras borgianas. Guimarães não gostou de Borges, que por sua vez nunca relevou a produção literária brasileira. O que o nosso escritor não perdoava no argentino era o seu desprezo pelos temas sociais. Lembrem que metade do mundo rasgou o Aleph, quando Borges aceitou as homenagens de Pinochet. Já Guimarães apontava, na mesma entrevista, como fundamentos da sua criação a vivência da guerra, a medicina e o convívio com o povo e sua cultura. Basta ler um único dos contos de Sagarana, para saber que isto é verdade.

Guimarães Rosa, que conhecia várias línguas como Borges, inventou um novo idioma para construir a sua obra. Conjeturam que a fala do povo mineiro ou os arcaísmos do português são a base da sua escrita. O que nunca é claro para mim é o sentido da invenção desse idioma roseano, que me parece mais impenetrável com o passar do tempo. Não estou negando a grandeza dos contos e do romance de Guimarães, o acabamento perfeito dos seus personagens, como Riobaldo Tatarana, comparável ao Raskólhnikov de Dostoiévski. Retomo as inquietações de Brook: O que é uma palavra escrita? O autor cria na perspectiva da sua cultura ou dos seus questionamentos pessoais? A carpintaria da escrita roseana, usando um jargão do teatro, me parece carregada dessa perspectiva de cultura brasileira. Não aceito o pejorativo termo regional para definir sua obra. Invento uma polêmica entre Guimarães e Borges. Ambos foram linguistas e viajantes. Borges tomou o mundo emprestado para falar da Argentina. Guimarães fala do sertão mineiro, quando se refere ao mundo.

Todo este longo preâmbulo, que se inicia com o teatro de Brook, atravessa Borges e deságua em Guimarães é para abordar questões bem particulares da nossa cultura local. Há algum tempo somos bombardeados por campanhas de “pernambucanidade” e “orgulho de ser nordestino”, gerando uma carreira de artistas em busca de caboclinhos, maracatus, cavalos marinhos e similares. Os jargões políticos são substituídos pelas novas palavras de ordem: raízes da cultura, cultura autêntica, arquétipos culturais, resgate da cultura do povo, manifestações populares. A classificação de popular fica incompreensível diante de tantas significações.

O que é irrecusável, não necessitando de ênfases, é que o lastro da cultura brasileira, sobretudo a nordestina, é de origem popular. É preciso insistir que somos um povo ainda em formação, com altos índices de analfabetismo e miséria, a maior parte sem nunca ter tido acesso a livros, teatros e museus. O único teatro que vimos, nas cidades de interior, foram os autos populares. O teatro burguês, culto, chegou a muitos apenas na idade adulta, depois que migraram para as metrópoles. O cinema, e recentemente a televisão, por serem mais acessíveis, ocupam um lugar que os livros e o teatro nunca ocuparam.

A criação é fruto não apenas da memória, mas também do conhecimento. O teatro grego nasce dos mitos, quando Heráclito já inaugurara o pensamento. Do mesmo modo Shakespeare consolida o inglês e reinventa o homem com o seu teatro. Muitos artistas criam as suas obras partindo da memória do popular. Assim foi com a excelente música russa, chamada nacionalista. Borges levanta a seguinte questão: “Que eu me lembre, o problema da literatura popular foi resolvido pouquíssimas vezes e nunca por autores do povo. Esse problema não se reduz (como crêem alguns) à correta imitação de uma linguagem rústica. Comporta, antes, um jogo duplo: a correta imitação de uma linguagem oral e a obtenção de efeitos literários que não excedam as possibilidades dessa linguagem e que pareçam espontâneos.”

Será que nos sentimos culpados ao nos apropriarmos de outras culturas, como o fazem Borges e Brook? Falta-nos a convicção do direito a um patrimônio comum a todos os homens? Seria este um sentimento típico de colonizados? Ou a nossa fidelidade ao sonho de criar uma arte “genuinamente” brasileira nos aprisiona ao invés de nos libertar?

Numa entrevista, Antunes Filho fala da sua encenação da Epopéia de Guilgamesh e lamenta ter estado tão perto da montagem do Mahabharata, feita por Brook, não compreendendo como esse pioneirismo lhe escapou. Brook realizou o que ele poderia ter realizado, adaptar o grande poema épico do povo indiano. Somente muito depois, quando a revolucionária encenação de Brook havia acontecido, Antunes encena Guilgamesh. Por que Antunes não se antecipou a Brook, se a ele não faltam gênio e invenção? Estamos atados a uma fidelidade nacionalista? Curiosamente, a grande criação de Antunes é Macunaíma, o herói brasileiro sem caráter.

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