Menino sonhando o mundo | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Menino sonhando o mundo

Quando tio Gustavo retornou do Sul, era madrugada. Ouvi os latidos dos cachorros, as batidas na porta de casa e o nome do meu pai chamado alto. Depois escutei minha mãe chorando, transtornada com a magreza do tio, seu semblante envelhecido. Tudo se passando junto de mim, em torno da rede em que eu fingia dormir para escutar as histórias que nunca me contavam.

– Menino não precisa saber certas coisas – era o que diziam, me enxotando para longe dos mais velhos.

Ofereceram ao tio o pouco que havia em casa: rapadura, queijo, coalhada fresca. Antes, o tio não comia esses alimentos rudes. A fome e o sofrimento na terra distante acabaram com seus orgulhos de homem.

– O Sul não existe – falou enquanto mastigava. – É pura invenção de violeiro repentista. Eles enchem a cabeça da gente de promessas mentirosas. Viajar é o mesmo que correr atrás de fumaça.

Mamãe olhava o irmão, em seguida olhava meu pai, arrumava a roupa vestida às pressas, sem ajuda de um espelho. Era a mais inquieta de todos nós, a que menos compreendia o mundo nebuloso de onde tio Gustavo retornava. Para ela, além do Sertão só existiam a Amazônia e o Sul.

 

Meu pai me dava instrução para o dia que eu tivesse de migrar. Aprendera a ler sozinho e ensinava o que sabia. Nossos livros estavam gastos, de tanto passar de mãos. Não eram muitos: A História Sagrada, As Mil e uma Noites, o Romance de Carlos Magno e os Doze Pares de França, A Ilíada. Para que precisávamos de mais livros? Toda sabedoria do mundo se concentrava nestes. Sem transpor os cercados da fazenda, conhecia as cidades da Terra: as de antigamente e as de agora.

– Você foi ao Mato Grosso? – perguntou meu pai.

– Fui, comecei a viagem por lá. Trabalhava numa fazenda de café. Os grileiros me fizeram de escravo. Nunca via a cor do dinheiro, pois estava sempre devendo ao barracão. Tomaram minhas roupas e até o fumo do cigarro eles controlavam. Tive malária e pensei que não escapava com vida. Ninguém daqui sabe o que é uma febre. Ela sempre chegava na hora certa e era a única certeza naquelas paragens. Quando senti que ia morrer, fugi por dentro da mata. Nem sabia para que lado ficava o norte. Desaprendi a olhar o céu e a me guiar pelas estrelas. Só enxergava a copa alta das árvores.

O tio enrolou um cigarro na palha de milho e de onde eu estava senti o cheiro conhecido do fumo. Quando crescesse eu também fumaria como todos os homens.

– Atravessei muitos rios até chegar à cidade; quase morro. Mas estou de volta e é como se nunca tivesse saído pra lugar nenhum.

– Você viu a cidade? – perguntou meu pai, com sua calma habitual.

Sem mexer-me na rede, para não descobrirem que eu escutava a história e percebia o alvoroço da família, busquei imagens dos meus livros para ilustrar a conversa misteriosa dos adultos.

– Fale da cidade – pediu minha mãe. 

– A cidade é tão conhecida, que nem é preciso visitar. A gente tem na memória.

Contou sobre o que eu mais esperava ouvir. O viaduto elevado como os jardins suspensos da Babilônia, maravilha do mundo por onde passavam pessoas e carros. Embaixo, plantações de flores trazidas do levante e do poente. A torre de uma catedral gótica, parecendo o minarete de uma mesquita de Bagdá. Cheguei a ver o califa Harum al Raschid, suas duas mil concubinas e o muezim anunciando a oração para os fiéis. Lembrava um aboio de vaqueiro tangendo o gado no fim de tarde. Embalado pela voz do tio, avistei um primo no exílio da Babel, erguendo as paredes de um edifício alto. O elmo rolava da cabeça, ele tombava anônimo das muralhas do castelo franco e ficava caído no chão de asfalto. Ninguém chorava por ele.

O resto se confundiu nos sonhos, como a noite no dia que principiava.

*Pintura: Roosevelt Modesto

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