28 jun O livro está sozinho
Não escutei batuque de maracatu na Feira do Livro de Leipzig. Numa das tardes, havia música num palco próximo, mas não atrapalhava as leituras e conferências. Alguns alemães da nossa comitiva se queixaram, porém o silêncio e a ordem davam o tom da Feira. Os auditórios, numerosos e de vários tamanhos, situados em pontos estratégicos dos pavilhões, eram abertos e sem qualquer proteção acústica. As pessoas sentavam para ouvir os palestrantes e leitores, ficavam até o final das apresentações ou seguiam em frente.
Visitei apenas o Pavilhão 4, onde ficava o stand do Brasil. Assustei-me com o gigantismo da Feira, espalhada em cinco pavilhões. A de Frankfurt é incomparavelmente maior. Penso na trabalheira de organizar tudo isso.
Há quem questione a presença de atrações que não sejam os livros e os escritores dentro dos espaços das feiras e festas literárias. Alegam que nunca ouviram dizer que no Rock in Rio houvesse livrarias ou palestras de intelectuais famosos, junto com os shows musicais. E queixam-se porque sempre que organizam um evento literário anunciam projeções de filmes, concertos, shows, exposições de artes plásticas, peças de teatro e por aí afora. Será que o livro não possui força bastante para atrair público leitor?
As nossas feiras de livros são barulhentas, um pandemônio. No Recife, costuma-se botar cortejo de maracatu para desfilar nos corredores do pavilhão. Vocês já escutaram os trinta batuqueiros do Nação Porto Rico, percutindo gonguês, caixas e bombos gigantes? Torna-se uma competição desleal. A voz do livro é sutil, sussurrada, com ritmo e pausas. Precisa de silêncio. Justo o que não tem nas nossas feiras. Os escritores gritam aos microfones para se fazerem ouvir, competem com os ruídos de fora e de dentro, e com as forças que tramam contra o livro.
O livro é minimalista; a música estridente e polifônica. O livro carece do foco de dois olhos, concentrado em suas páginas ou numa tela pequena; o cinema se projeta em tela grande, com o reforço de cores, sons e vozes. O livro requer isolamento; a música se faz para o coletivo. A voz do livro soa com o recurso de nossa própria voz; as vozes do teatro repetem-se em corpos e gargantas de atores, representadas. O livro pede o ensimesmamento; as redes sociais a exposição da vida. O livro precisa de um culto apenas para ele, pois é um gene do qual proliferam as outras artes.
O livro vive em transformação, com a corda no pescoço e uma sentença de morte. Mimetiza-se para sobreviver, muda de cores, camufla-se, faz conluios, ganha formas bizarras. Especula-se sobre o seu fim, o dia em que serão queimadas as bibliotecas. Perseguido desde a Alexandria, condenado nas ditaduras modernas de Hitler, Stalin e Mao, ele resiste. E até o celebram em feiras, festas, festivais, nos quatro cantos do mundo.
O livro nem precisaria da assinatura do autor, essa coisa inventada pela modernidade. Afinal, ele vive esquecido numa prateleira, sozinho, condenado ao exílio. Somente quando um leitor o descobre, o folheia e escuta as vozes guardadas nas suas páginas ele adquire vida e se recria. Torna-se novo, contemporâneo. E se basta. Não é necessário o batuque de nenhum maracatu ao lado, nem as vozes polifônicas de um coral barroco para realçar sua grandeza.
O livro tem voz própria e fala.
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