01 ago A rainha sem coroa
Dona Madalena foi quem me contou a história. No tempo em que eu tomei por obrigação conhecer e registrar os brinquedos populares de Recife, armado de um pequeno gravador e de uma máquina fotográfica. O meu parceiro Bérgson Queiroz preparou uma lista de vinte perguntas, que fazíamos aos entrevistados. Quando um dono de caboclinho, la ursa ou maracatu falava demais, era um prejuízo. Nosso dinheiro curto só permitia a compra de poucas fitas e cada entrevistado não podia falar mais de uma hora. Com uma disciplina de monges budistas, todas as noites subíamos morros e descíamos ladeiras atrás dos brinquedos que se apresentavam no carnaval. Nesse tempo, não fazia medo se meter pelo Córrego do Jenipapo ou pela Linha do Tiro.
Nas andanças, que duraram alguns anos, eu tive a certeza dos vários Recifes que formam a nossa cidade. Descobri etnias, estratos de culturas, religiões e trabalhos. Constatei que os artistas populares guardam um saber arcaico na forma de narrativas, danças, gestos, cantos, risos e falas. Nada teorizam sobre essa memória, importando-se apenas em repeti-la e ensina-la.
Quando a história aconteceu, dona Madalena era rainha do Indiano, e dona Santa reinava absoluta no carnaval de Recife, como última rainha coroada, segundo a tradição dos reis de Congo. Os colonizadores brancos criaram esse ritual no século XVII e o objetivo é bem fácil de adivinhar. Desejavam manter os escravos agregados em torno das “majestades” e de uma corte eleita por dois anos, em tudo semelhante às cortes européias. Com isso evitavam a insubordinação e as fugas. Os reis e rainhas dos negros eram coroados na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, por um padre ou bispo católico, na presença de autoridades políticas. Após a solenidade, desfilavam pelas ruas da cidade, seguidos de cortejo e batuque. Essa é a origem mais provável do maracatu, que terminou achando lugar no carnaval, como tudo em Pernambuco.
O reinado de Santa começou no Leão Coroado. Dizem que ela assumiu o Elefante para substituir a mãe, que morrera, ou porque se casou com o dono do Maracatu. Ninguém sabe ao certo. O que todos afirmam é a sua imponente majestade. Madalena, antes de ser rainha do seu próprio maracatu, dançara na corte de Santa. Espalharam que as duas não se gostavam, o que não sei se é verdade. Além das disputas entre maracatus, que às vezes terminavam em pancadarias e mortes, Madalena nutria um despeito contra Santa, porque não fora coroada oficialmente. A Igreja Católica, que sempre estivera a serviço do poder instituído, recusava-se a fazer novas coroações. Santa era, portanto, a única rainha de direito. Só ela, além de padres e bispos, poderia coroar uma sucessora.
Costumavam celebrar o aniversário de dona Santa, na sua residência no Ponto de Parada, com o fausto devido a uma rainha. No ano em que a história se passa, convidaram caboclinhos, blocos, troças, alguns maracatus, mas não chamaram o Indiano, nem Madalena. As duas mulheres, poderosas no meio do seu povo humilde, eram também ialorixá, mãe de santo, com uma legião de filhos e mães pequenas. Santa, pelo costume de trajar sempre a cor branca, seria filha de Orixalá e naturalmente calma. Mas não tenho certeza. Madalena era filha de Ogum, orixá dos ferros e da guerra, recebia uma corrente forte, de determinação e luta. Juntou o povo da sua corte e comunicou que todos iriam à festa de Santa e do Elefante, mesmo não tendo sido convidados. Houve protestos, temores, gritos. Consultaram Ifá, o oráculo. Ele mandou que fossem.
Na manhã da celebração, Madalena e os seus desceram o Alto do Pascoal, vestidos a caráter: estandarte na frente, damas de paço, damas de calunga, corte, rei e rainha resguardados do sol pela umbela. Quando avistaram a casa terreiro de Santa, cantaram uma toada. Silêncio. Madalena enviou um emissário e aguardou resposta. Os minutos duravam horas. O emissário retornou acompanhado de um pajem com o estandarte do Elefante. O vassalo curvou-se diante do estandarte do Indiano, cruzando as duas bandeiras no alto, em sinal de cumprimento e boas vindas. O cortejo foi recebido e Dona Santa, sentada num trono, pediu que Madalena ficasse à sua direita durante toda a festa.
– Madalena – perguntou Santa –, você sabe como é que se coroa uma rainha?
–Não sei não, senhora – respondeu a majestade do Indiano.
– É na Igreja do Rosário dos Pretos. Venha me visitar uma tarde dessas, que eu lhe ensino tudo. Vou coroar você rainha.
O resto não se escutou. Os batuques de todos os maracatus presentes à festa decidiram tocar juntos. As vozes ficaram abafadas como a verdade dos povos negros, que teimam em resistir. Apesar dos empresários da cultura, que a cada ano lançam na rua os seus maracatus caça-níqueis, sem linhagem de santo, sem vínculo de nação. Simulacros grotescos, cortejos mortuários de nagôs, jejes e xambás. Estilizações, arremedos exaustos de gestos milenares, sem qualquer tradição. Alheios aos sentimentos que moviam Santa, o desejo de coroar uma sucessora.
Coisa que não fez. A morte a levou alguns dias depois da promessa.
Ronaldo Correia de Brito
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