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Agenda

Se alguém se der ao trabalho de ler os muitos volumes da “História em Revista”, da Time-Life Books, começando na era dos reis divinos e chegando à contemporaneidade, ficará com a impressão de que a história do homem nesses 5000 anos não passou de uma sucessão de guerras, massacres e destruições. Dos rudimentares tacapes à bomba atômica, mesmo que tenham avançado nas ciências e nas artes, os povos de todas as regiões do planeta se especializaram em matar, pondo o seu gênio criador a serviço da ruína. É bem verdade que nos encaminhamos para a morte a cada segundo, desde a nossa fecundação. Mas além das doenças e do envelhecimento natural das células, paira sobre nós um espectro de bombas, tiros e facadas, desferidos pelos nossos semelhantes. É como se em cada homem, além do instinto de sobrevivência se manifestasse uma pulsão destrutiva de intensidade variável, mas sempre presente na história, mesmo nos períodos de maior pujança.

Morremos e matamos, de forma real ou simbólica. Os contos de tradição oral e os mitos cumprem uma função simbolizadora. Quando Iahweh, deus dos judeus, pede a Abraão que sacrifique o seu filho Isaac, como prova de obediência, ele aceita a vontade divina. Prepara o altar, a fogueira, a faca, mas é impedido de cumprir a promessa. O Deus aceita a oferenda de um cordeiro, no lugar de Isaac. O mito bíblico ilustra para os judeus o fim de um tempo em que se sacrificavam seres humanos aos deuses, significando uma evolução da espécie, uma capacidade de representação. Mais tarde, até mesmo o sacrifício animal é abandonado. No cristianismo, a morte do cordeiro pascoal, o Cristo, é simbolizada no pão e no vinho, carne e sangue do deus feito homem.

Cometemos os nossos pequenos assassinatos de mil formas simbólicas, nos jogos infantis de guerra, nos videogames, no cinema, na televisão. Dizimei os soldados que açoitavam o Cristo, esfregando suas caras maldosas com o dedo molhado de cuspe, até que não restasse nem sombra deles, nas ilustrações em papel de uma velha História Sagrada. Mais tarde, continuei matando personagens na literatura e no teatro, nunca tanto como Shakespeare, para quem os padioleiros eram insuficientes, tamanha a carnificina de suas tragédias. No teatro isabelino retiravam-se os mortos em cena aberta.

Em muitas sociedades tribais, e estados como o espartano, matar um homem representava a condição para se ter acesso à vida adulta. Era um dever instituído, uma lei bastante ritualizada. Um adolescente de uma tribo do Quênia, até bem pouco tempo, tinha de caçar um animal selvagem e matar um guerreiro de outra tribo rival para se tornar guerreiro. Em Esparta, os meninos da antiga aristocracia, os espartíatas, separavam-se da mãe ao completarem sete anos, sendo entregues ao Estado, de quem recebiam uma educação cívica. Aos doze anos eram enviados para o campo, sustentavam-se por conta própria, dormiam ao ar livre, aprendiam a roubar. Desse modo, fortaleciam o físico e desenvolviam habilidades. Aos dezessete anos, passavam por um ritual que consistia em se esconderem durante o dia e, à noite, emboscados, degolarem o maior número possível de escravos. Quem sobrevivia a essa prova era considerado adulto, recebia um lote de terra, e tinha direito a servir como soldado, morando num quartel. A matança criava um permanente estado de terror entre a população escravizada, cuja condição de vida era das mais miseráveis no mundo antigo, além de limitar o seu crescimento.

Esse relato abominável parece perdido na história. Mas Esparta serviu de modelo para o nazismo e o stalinismo, e não seria excesso de imaginação tecer paralelos inversos com o nosso país. Aqui, os jovens abandonados pela sociedade civil e pelo Estado engendraram um sistema de caça aos cidadãos comuns. Armados de todas as maneiras possíveis, eles roubam e matam, em idades cada vez mais precoces, autodidatas das ruas, de favelas e invasões, bando miserável e psicótico, que encontrou na violência o único meio de sobreviver. Só que esses jovens, na maioria usuários de drogas, também são caçados por rivais do mesmo grupo social ou pela polícia, supostamente a serviço da lei, mas igualmente marginal.

Cansei de violência, enfraqueço a cada novo relato de violência. Torno-me melhor à medida que mato menos personagens em contos, novelas e peças de teatro. Do hábito infantil de destruir soldados nas ilustrações de uma velha Bíblia, restou apenas o exercício de apagar da agenda o nome, o endereço e o telefone dos amigos que se foram. Com borracha ou corretivo, transformo em vazio as linhas cobertas de letras. Em mim, os nomes não se apagam nunca.

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