22 jan Cabeça para baixo, pernas para cima
*Modelo: Maycon Douglas | Foto: Andréa Rêgo Barros
O carnaval nunca mudou, desde os seus primórdios, nos temas reais e simbólicos que o definem: carne e bebida, sexo e violência. Para os italianos, é da palavra carne que vem o seu nome – carnevale, significando vale comer carne.
Mundo de cabeça para baixo, quando a cabeça do mundo era para cima, no carnaval o rei saía disfarçado no meio do povo e um camponês ostentava uma coroa. Hoje, os políticos fazem questão de mostrar-se em palanques oficiais ou camarotes de luxo. Nas gravuras antigas, os homens aparecem vestindo roupas femininas e as mulheres de calças, botas, chicote na mão, fumando charuto e dando ordens. Os velhos símbolos da inversão do mundo foram para os baús e o que era exclusividade do carnaval virou rotina.
Para que servem os três dias de carnaval, que em Recife e Olinda, dependendo do calendário, podem ser trinta ou sessenta? Controle social? Fuga de um cotidiano miserável? Reunião de classes e culturas, celebrando a alegria e o prazer? A democracia do carnaval, cantada em marchas e sambas, existe mesmo? Desfeita a maya alcoólica é possível o reencontro dos homens e mulheres que se abraçavam como foliões?
Um cordão de isolamento, real ou simbólico, divide as gentes pernambucanas na festa de carnaval, como o Capibaribe separa o Bairro de Santo Antônio do Recife Antigo. Alguma coisa mudou, é bem verdade. Antigamente, um cavalo marinho pedia licença ao senhor de engenho para se apresentar no terreiro da casa grande. Os donos da casa assistiam ao brinquedo lá de cima do calçadão. Hoje, é possível ver na rua do Bom Jesus um mestre rabequeiro tocando ciranda num palanque, para deleite dos antigos senhores, que dançam em baixo, no meio da rua.
Enquanto se apresentam na passarela, nenhum brilho ofusca as golas de vidrilhos e lantejoulas dos brincantes de maracatu rural. Tontos de cachaça, os caboclos carregam o surrão de chocalhos como se fosse uma cruz leve, bem mais maneira que o facão de cortar cana. Cumprem o cortejo e refazem o caminho de volta às casas de taipa onde vivem.
O carnaval tem alegrias e amarguras. É insuportável sem a embriaguez. Sem as libações alcoólicas a dura realidade não se transforma no sonho de três dias. Os cortejos reproduzem uma falsa democracia social, a perigosa convivência entre ricos e pobres. As flechas dos caboclinhos, as lanças dos lanceiros e as espadas da corte romana do maracatu são todas alegóricas. Nenhuma dessas armas fere a realidade que jugula os brincantes. Mesmo que vivamos em clima de guerra civil, separados em campos de batalha, em morros e condomínios fechados, favelas e prédios de luxo, palafitas e Lago Sul, no carnaval as investidas são todas pacíficas, os ataques ao passo de dança, as embaixadas poéticas.
Numa esquecida representação do auto de caboclinhos, o tuxaua conclama os seus guerreiros:
–Tupiriçá!
– Taquá!
– Que caboclos são vocês?
– Caetés!
– Caetés pedem paz ou guerra?
– Guerra!
A crônica policial da quarta-feira de cinzas atribui a acidentes ou motivos passionais o saldo de mortos da guerra de Momo.
– Será o Brasil o verdadeiro mundo de cabeça para baixo?
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