28 jan I – A imagem
O espetáculo da crueldade é comum a vários tempos e a quase todas as civilizações. A nossa era especializou-se em representá-lo através de imagens, subestimando o texto. Por mais realista que seja uma literatura, ela não produz o impacto da imagem. Nem o teatro, com todos os excessos, possui o alcance e a força persuasiva do cinema e da televisão, cada vez mais reais ou hiper-reais.
Os mitos antigos relatam a história da Medusa, que transformava em pedra qualquer um que a olhasse de frente. O herói grego Perseu só conseguiu vencê-la porque a mirou através da imagem refletida no escudo. Existirá uma forma de contemplar as imagens que nos apresentam, sem endurecer o coração? O exemplo de Perseu nos ensina que não é possível encarar a górgona, apenas o seu reflexo. O equivalente moderno do escudo seria a nossa vigilante crítica, a capacidade de ver e pensar.
Já existiu tempo sem a obsessiva necessidade da imagem. A palavra tinha um poder inerente a si própria. Falava-se, escrevia-se. O teatro fundado pelos gregos sobreviveu através da poesia. Mesmo havendo o complemento da música, do canto, da dança e das alegorias, a força maior era da palavra. A fala ilustrava a fala, a ação se narrava. Em Édipo Rei, de Sófocles, Jocasta descobre que dormiu com o próprio filho e se enforca. Em seguida, Édipo fura os olhos com o broche da mãe e esposa. Não são necessárias imagens de corda e corpo se debatendo, nem de órbitas sangrando. O fato trágico é narrado pelo Corifeu, o que não diminui nossa dor. Na sequência, há uma fala do Coro, que se refere “a um ponto tão terrível de ver quanto de escutar”. A modernidade, com suas máquinas de fabricar imagens, baniu o “ponto” de escuta.
Precisamos analisar o que a televisão e o cinema nos mostram, buscando uma ética. Os conteúdos possuem sentido artístico, político e educativo ou apenas preenchem o tempo do espectador, vendem um produto? Para os gregos, o que se representava como teatro era indissociável de religião, política e sociedade. A ação criminosa de um indivíduo gerava a falha trágica, instaurando o Caos no Universo. O herói agia pela força do Destino, como Édipo. Tentando fugir ao oráculo que previra que mataria o pai e casaria com a mãe, ele terminou cumprindo o que o Destino traçara. Mesmo sendo vítima de acasos, não foge à inevitável punição, aceita-a e “se purga de suas faltas, realizando diante da plateia a função exemplar de que se reveste a tragédia”, e restaurando a ordem individual e do Cosmo do qual faz parte.
É difícil estabelecer um nexo no amontoado de imagens e informações que nos apresentam todos os dias, encontrar uma razão ordenadora e transformadora. Talvez se extrapole limites comparando a tragédia grega com o noticiário comum ou o cinema comercial. Tentamos ilustrar o que em um se constrói com palavras e no outro com imagens.
É possível traçar um paralelo entre a Antígona, de Sófocles, lutando para reaver e enterrar o corpo do irmão morto nas muralhas de Tebas, e os familiares dos presos da Urso Branco, assistindo ao massacre dos parentes, e também lutando para reaver seus corpos e sepultá-los. O que difere é a maneira de apresentar a tragédia. Para o poeta grego há um compromisso com o bem e o eterno. Para o jornalismo de imagens interessa o alcance provisório de um grande público e o rápido esquecimento. Muitos espectadores não se doem além da epiderme, outros sofrem um transtorno que se revelará inútil, porque as imagens são desvinculadas da crença numa ação divina e no Estado Político.
Solitário, frente ao espetáculo da tela, o homem moderno sente-se perplexo e impotente como um personagem kafkiano. As palavras fazem-lhe pouco sentido, porque há muito ele não conversa com outras pessoas, perdeu a noção de coletividade. Prefere a companhia de imagens semelhantes à sua, multiplicadas infinitamente como somente o mais perverso dos espelhos seria capaz de conseguir. Desarmado, ele não se atreve a cortar a cabeça da Medusa-televisão. Contempla a tela de olhos monstruosos, deixando que o coração se transforme em pedra.
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