30 jan A medicina e a pulga paralítica
A medicina praticada pela maioria dos médicos sofre de um orgulho desmedido, uma fé irremovível na técnica em que se fundamenta. Não farei qualquer ataque à razão e à técnica, porque técnica para mim continua sendo téchnikós, que significa relativo à arte. No entanto, questiono o modelo de medicina baseado numa razão infalível, que muitas vezes subestima a ética, a cultura e a subjetividade do paciente. Em algumas formas do seu exercício, sobretudo no trato com as populações mais pobres, a medicina lembra os colonizadores que invadem nações, consideram os povos dominados inferiores, rejeitam sua cultura, os valores sedimentados durante séculos. No caso do Brasil, somos um povo formado por vários estratos de civilização e cultura, alguns ainda no neolítico, como os índios Ianomâmis.
Não existirá uma maneira menos traumática de propor a troca dos sons das pedrinhas do maracá numa pajelança, pelo ruído do aparelho de ressonância magnética? Trocar uma magia por outra, sem afirmar a supremacia do conhecimento tecnológico, o poder da medicina científica contra a fumaça do cachimbo do pajé. Mas para isso nos falta humildade. E somos castigados pela nossa hybris, a arrogância do saber absoluto. Ao mesmo tempo em que avançamos nas mais sofisticadas tecnologias de investigação e tratamento, nossa gente permanece sofrendo os males próprios da pobreza: fome, violência, analfabetismo e doenças de veiculação hídrica, pela ausência de saneamento básico.
O culto ao diagnóstico tornou-se uma obsessão na prática médica. Não importa se o objetivo é o benefício ou não do paciente. Interessa agir como um detetive, revirar as entranhas de quem sofre, chegar a um dos números do Código Internacional de Doenças (CID). É a lógica da observação científica, quase sempre absurda, como no relato de Jean-Claude Carrière, em O Círculo dos Mentirosos.
“Um cientista examina uma pulga que veio se instalar perto dele. Ele lhe ordena: ‘Pule!’, e a pulga pula. O cientista escreve numa folha de papel: ‘Quando dizemos a uma pulga para pular, ela pula’.
Então, ele pega a pulga e arranca, cuidadosamente, as suas patas. Coloca-a perto dele e ordena: ‘Pule!’.
A pulga não se mexe. O cientista anota na folha de papel: ‘Quando arrancamos as patas de uma pulga, ela fica surda’.”
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