27 fev Linhas de força
O rapaz amarra o lenço colorido na cabeça, aperta os nós sob o
queixo, e involuntariamente olha para frente como se procurasse a ajuda de
um espelho. Ficou bem, digo para mim mesmo, firme na posição de
observador sem câmera fotográfica, um voyeur carnavalesco, que não
brinca, só contempla. Está bonito, apesar dos olhos congestos pela cachaça,
e dos dentes estragados, alguns faltando. A camisa aberta revela que ele
não aderiu ao gosto dos mais jovens, depilar o peito e o abdome. Também
não aparou as sobrancelhas e o corte do cabelo pintado de louro é
tradicional. A caboclada se veste no meio da rua, os passantes reparando
curiosos. Brincam entre eles, soltam pilhérias, tentam descontrair.
Chegaram em ônibus velhos e desconfortáveis, sem refrigeração,
comprimidos em meio aos adereços pesados. A maioria saiu de casa
envergando a indumentária de baixo: o ceroulão, a calça de franjas presa
aos joelhos por elásticos, a blusa estampada de mangas longas. No passado,
segundo a lenda, teriam bebido algumas talagadas de aguardente com
pólvora ou a jurema. Um pequeno espelho corre entre as mãos calosas pelo
manuseio da foice, no corte de cana. Retocam a pintura vermelha do rosto
com batom, pois já não se usa o preparo de urucum.
Ajudam-se na hora de colocar o surrão, forrado com pelo sintético no
lugar da lã de carneiro, e com um número ímpar de chocalhos, para não
atrair azar. Depois vestem a gola, bordada de lantejoulas, miçangas e
vidrilhos, um fetiche que se reborda todos os anos e se oculta como segredo
de caboclo. Por fim o chapéu confeccionado com milhares de fitinhas de
celofane, os óculos escuros e o cravo branco mastigado entre os dentes.
Antes que o rapaz apanhe a lança e saia para o desfile, eu me aproximo
dele. O cortador de cana da Zona da Mata de Pernambuco, indivíduo
comum, anônimo, calejado no convívio com a pobreza e a violência, se
transformara diante dos meus olhos numa entidade. Quem é esse? Chego
perto, ousadamente afasto a cortina de celofane que recobre seu rosto e falo
algumas tolices sobre a minha surpresa e deslumbramento com o que
acabara de testemunhar. Ele não compreende o que eu digo, me encara com
surpresa e desdém e se afasta agitando os chocalhos do surrão.
São numerosos os maracatus, com brincantes de todas as idades.
Renovam-se através dos jovens e das crianças que incorporam ao
brinquedo seus cabelos de cortes extravagantes, pintados de rosa, azul,
verde, amarelo, dourado, o jeito diferente de falar, as novas jingas do
corpo.
Em 1938, Mário de Andrade enviou uma equipe a Pernambuco e à
Paraíba para registrar cantos, danças e rituais que ele considerava em
extinção. Quase 80 anos depois percebemos o quanto caboclinhos e
maracatus se multiplicaram, provando uma capacidade de resistência e
transformação das culturas populares, embora elas continuem convivendo
com as mesmas ameaças identificadas pelo escritor: o preconceito, as
intervenções do poder público e a perseguição contra religiões de origem
indígena e africana. Entre os pernambucanos, observou-se que o vínculo
dos maracatus e caboclinhos com o culto aos orixás e à jurema, serviu para
fortalecer essas culturas, pois lhe conferem um caráter não apenas de
brincadeira, mas também de sagrado. É comum que os maracatus nação
tenham como sede as casas de santo, e seus reis e rainhas sejam babalorixás
e ialorixás.
Nesse ano de 2016, sentimos a ausência das tradicionais nações Leão
Coroado, Indiano e Elefante. Mas, percebemos crescer a força feminina nos
batuques, a consciência e o orgulho de ser negro, a afirmação da língua
africana, antes camuflada na língua dos brancos. Antigamente, a Religião
Católica e o Estado demonizavam os rituais afros. Hoje, os evangélicos,
pentecostais e para pentecostais assumem o lugar de perseguidores,
doutrinadores e aliciadores, o que representa ameaça mais preocupante do
que foi percebida por Mário de Andrade em 1938. A guerra é declarada, os
pregadores da “Palavra” não toleram camuflagens nem sincretismos.
Monoteístas radicais, sem cultos à divindade feminina, a Universal do
Reino de Deus, Assembléia de Deus, Testemunhas de Jeová, Quadrangular,
Deus é Amor, Nova Vida, e mais uma centena de outras, empunham a
Bíblia, vociferam e agridem os praticantes de outras religiões, incendeiam
casas de santo.
A prefeitura do Recife homenageou maracatus e caboclinhos, o
batuque negro, o toque perré dos índios, e um clube tradicional, o Pão
Duro. As agremiações carnavalescas formadas por trabalhadores urbanos,
carvoeiros, varredores, lavadeiras, feirantes, caixeiros, lenhadores,
espanadores, ferreiros, engomadeiras e até parteiras, as chamadas
corporações de ofício, entraram em decadência. No vaivém desses clubes e
troças, seguidos por vadios, moleques de rua e capoeiras, acompanhando
bandas de música ou orquestras de metais, nasceram o frevo e o passo
pernambucano. Essas corporações enfraqueceram ou deixaram de existir,
minguaram suas orquestras. Surgiram outros cortejos no seu lugar, talvez
menos populares, sem afinidades corporativas. Alguns são criações de
produtores, com o olho no mercado e no lucro. Muda a feição do carnaval.
Vínculos se desfazem, como os dos clubes com as corporações, outros se
fortalecem, como os dos maracatus e caboclinhos com os cultos afro-
ameríndios. É a dinâmica da cultura. Nem vale a pena perguntar quem
ganha ou quem perde.
A classe média e os ricos continuarão brincando o seu carnaval de
apartheid, em camarotes climatizados, onde se bebe uísque oito anos e
olham-se os populares de cima. Era assim nas igrejas católicas, os negros
assistiam à missa do lado de fora. A mestiçagem de que falava Gilberto
Freyre é real, basta conferir nas ruas de Recife e Olinda. Os brancos
privilegiados e apartados também são reais e prosaicos. Mas, não se vestem
com o aparato divino de um caboclo de lança.
No Comments