12 mar As mil e uma noites nunca mais (Crônica publicada na Revista Continente em março de 2003)
George W. Bush tem muitas dívidas para com a história: a desmoralização da ONU, a destruição de um país, as mortes de civis iraquianos, e ter posto em risco a frágil paz mundial. Mesmo não acreditando que a vontade de um único homem impulsiona nações para a guerra, responsabilizo Bush por esses crimes.
Existe uma dívida a que ninguém se refere, a de ter destroçado em nós o sentido de Oriente, que séculos de história ajudaram a construir. Não perdoo o incêndio de bibliotecas, queimando livros raros e preciosos. Não perdoo a pilhagem de museus que guardavam tesouros das civilizações mais antigas. E não esqueço que as precárias ruínas da Babilônia estiveram a ponto de desaparecer. Porém o mais imperdoável em Bush é a sua absoluta alienação do passado, como se ele e o os americanos fossem seres à parte, únicos predestinados a viver e a sobreviver.
Relatam que um bárbaro, que participava do cerco e tomada de Roma, passou-se para o lado dos romanos, tamanho foi o seu fascínio por aquela civilização. César e Marco Antonio não resistiram aos encantos do Egito. Alexandre da Macedônia, depois da conquista do Oriente, deixou de ser apenas grego para também se tornar um persa. Os povos do islã se referem a ele como Alexandre Bicorne, porque tem os dois chifres, o do Oriente e o do Ocidente. Morreu aos trinta e três anos na Babilônia que Bush mandou bombardear sem nunca ter conhecido. Bush desconhece o resto do mundo, não transpõe o umbral da Casa Branca, pratica a guerra moderna, matemática, cirúrgica, feita de longe, por meio de bombardeios aéreos. Nunca sente o cheiro de sangue, nem olha de perto o rosto do conquistado. Seu sentido de heroísmo está longe dos guerreiros que lutavam corpo a corpo.
Até Napoleão Bonaparte seguia ao lado dos seus exércitos. Na campanha contra a Rússia, realizou um sonho acalentado por anos, o de entrar em Moscou, a cidade mais fascinante a oriente. Alexandre da Macedônia conhecia história, foi aluno de Aristóteles, dormia com a espada e um exemplar da Ilíada debaixo da cabeceira. E Bush, esse texano de olhar paranoico, o que terá lido? Quem são os seus heróis? Será que alguma vez folheou um exemplar de As Mil e Uma Noites, mesmo na tradução de Antoine Galland, a mais falsa e ocidentalizada?
Com certeza leu a Bíblia, mas deve ignorar que duas nações foram essenciais para a formação da nossa cultura ocidental: a Grécia e Israel. Israel, que já foi um país oriental e não é mais, mesmo estando geograficamente assentado no Oriente Médio. Através da Bíblia Bush deveria ter compreendido que a cultura de um homem tem tanta significação em sua vida como o sangue que corre nas veias. E que não se pode negar o passado oriental, o judaísmo cristão, nem o legado da Mesopotâmia, seja a Suméria ou a Bagdá do califa Harun al-Rashid.
O que é o Oriente? Será que Bush se fez essa pergunta uma única vez? Desde os gregos, esse espaço indefinido geograficamente nos fascina. Heródoto nos faz a revelação do Egito, longínquo porque naquela época se demandava um longo tempo para percorrer as distâncias. As navegações eram perigosas e o desconhecido misterioso. E é justamente o mistério que se associa a esse mundo remoto do sol nascente. Ocidente e Oriente sempre se movimentaram um em direção ao outro, quase sempre de forma trágica, porque o saldo maior das guerras é a tragédia.
Mas foram os viajantes como Marco Polo e os menestréis acompanhantes dos cruzados que trouxeram os relatos fantásticos, cheios de tesouros e aventuras. As narrativas desse oriente, recontadas pelos viajantes, eram acrescidas das fantasias do narrador, formando um imaginário que só fez avolumar-se ao longo dos anos. Franceses, ingleses, alemães e espanhóis trouxeram As Mil e Uma Noites e o livro erótico O Jardim Perfumado, depois ocidentalizados. O teatro de Molière, no século XVII, vinga-se do desprezo do Império Otomano pela corte de Luis XIV, em paródias e bailados grotescos sobre os turcos, em que o exagero é a tônica.
Mas nada se compara ao cinema americano na construção desse imaginário oriental. Em filmes de segunda, são mostradas odaliscas licenciosas, gênios da lâmpada, tapetes voadores e califas cruéis e arbitrários como a propaganda pintou o próprio Saddam Hussein. Tudo falso e caricatural, cheio de desprezo pelos costumes dos outros povos.
A cultura americana de consumo especializou-se em ficar na superfície do que aborda. Forjou um mundo sem mistério, sem noção de sagrado, cujos ícones são a Coca-Cola e a batata frita. O que não perdoo a Bush é ter mostrado ao mundo apenas um oriente de barbáries. Como se nos Estados Unidos não se praticassem atrocidades: filhos assassinando pais e crianças metralhando professores e colegas na escola.
Quando Alexandre da Macedônia mandou que os seus soldados destruíssem Tebas, pediu que deixassem de pé a casa do poeta Píndaro. Por mais cruel que Alexandre tenha sido, foi capaz de um gesto de clemência para com a poesia. Na guerra do Iraque, os americanos e ingleses bombardearam de uma só vez a civilização suméria, os impérios assírios e babilônicos, e o califado de Bagdá. Além de homens, mulheres e crianças mataram o nosso passado e a nossa história.
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