A estrela e o crescente | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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A estrela e o crescente

(Com esse pequeno ensaio, publicado há mais de 15 anos na Revista Continente, encerramos a série de três crônicas sobre os embates entre Ocidente e Oriente)

A tradição popular nos ensinou que São Francisco de Assis foi o primeiro a encenar um auto natalino, com os temas pastoris que chegaram até os dias de hoje. Isso pode ser verdade para a representação teatral. Porém conhecemos vários registros mais antigos da Cena da Natividade, todos com influências pagãs, evidenciando o interesse que tinha a igreja da época em conquistar os rebanhos desgarrados.

Numa cerâmica do século IV, sobre o nascimento de Jesus, encontramos dois animais bem comuns nas lapinhas: o boi e o jumento. As pessoas daquela época sabiam que eles simbolizavam os irmãos inimigos, Seth e Osíris. Segundo a mitologia egípcia, Seth havia assassinado Osíris para vingar-se de uma afronta. A intenção de colocá-los juntos naquele cenário era a de afirmar que em Cristo os opostos se reconciliam. No mesmo presépio de barro, três reis se curvam diante do Menino: Tendo pois, nascido Jesus em Belém de Judá, reinando o rei Herodes, eis que uns Magos chegaram do Oriente a Jerusalém, dizendo: Onde está o rei dos Judeus, que acaba de nascer? Porque nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo. (Mateus, 2-1)

Afirma-se que os evangelhos foram ditados por Deus e que os homens são meros escribas. Suspeitamos, no entanto, que os textos sagrados tenham sido adaptados aos interesses da igreja e dos seus pregadores. Chamamos a atenção para um outro detalhe da cerâmica. Os três reis Magos ostentam chapéus frígios, uma indumentária característica do deus persa Mitra, que junto com os seus seguidores eram terríveis rivais do cristianismo. Há uma intenção evidente, por parte da Igreja do séc. IV, em mostrar os símbolos das mitologias orientais curvados aos pés daquele que seria a encarnação histórica do único e verdadeiro Deus.

Quando Mateus escreve sobre o nascimento de Jesus, se refere aos Reis Magos como vindos do Oriente. Isto é afirmar que Belém não fica no Oriente? Ou que está a ocidente, embora se situe no que chamamos hoje de Oriente Médio? Insisto nessas questões geográficas porque o cristianismo judaico, religião que se ocidentalizou com o passar dos séculos, agravou essa ruptura.

No Gênesis, Abraão é pai de dois filhos: Isaac, com a esposa Sara, da mesma raça e estirpe; e Ismael, com a escrava egípcia, Agar. As incompatibilidades entre esposas se manifestam e Sara exige que Abraão expulse a escrava com o seu filho indesejado. Ismael e a mãe são abandonados no deserto, mas o Deus de Abraão se compadece do menino e promete fazer de sua descendência um grande povo. Está escrito que Ismael habitou no deserto de Faran e sua mãe tomou para ele uma mulher egípcia. Com imaginação poética seria possível acreditar que o boi e o jumento da cerâmica representam também os dois irmãos inimigos, Isaac e Ismael.

Não é de surpreender que as grandes religiões que se espalharam pelo mundo tenham surgido no Oriente. Lá, começa a trajetória do homem, o seu registro em escrita. A Europa e o chamado mundo ocidental, com exceção da Grécia, têm uma história mais recente. É compreensível que o pregador cristão Paulo, embora sendo cidadão romano, comece o seu apostolado na cidade de Antioquia, na Síria, ponto de partida e retorno das suas viagens. Numa das suas aparições, Cristo havia-lhe ordenado: Vai porque eu te enviarei às nações remotas. Só mais tarde, Paulo se dedicará à catequese de Roma. Há, de início, um movimento pacífico de conquista do Oriente para a fé cristã, em que as únicas armas usadas são as palavras e os atos apostólicos, bem diferentes do que seriam mais tarde as cruzadas e os tribunais de inquisição.

No século VII, quando Maomé fundou o Islã, o cristianismo já era a religião oficial do império romano e se encontrava difundido por todo o Oriente, convivendo em muitos países e cidades com o judaísmo, o zoroastrismo, resquícios do paganismo grego e romano e crenças locais. O islamismo surge como um levante do mundo árabe, num tempo em que a igreja de Cristo passava por várias divisões.

Segundo a tradição, rabinos judeus, monges cristãos e adivinhos árabes previam o advento de um profeta. Maomé é o “Anunciado” e adota a linha dos profetas da tradição judaica e cristã.  O Islã reivindica os direitos à ancestralidade de Abraão, fundador de uma fé monoteísta, comum não apenas a judeus e cristãos, mas também aos muçulmanos. Com a universalização da doutrina islâmica, os vínculos com essas religiões se desfazem. As orações, antes proferidas com os fiéis voltados para Jerusalém, agora são recitadas na direção de Meca. Os judeus, habituados a um convívio pacífico na Arábia, são perseguidos e mortos. Os descendentes do pai comum Abraão, beligeram. O Profeta declara em uma de suas últimas mensagens que todos os muçulmanos são irmãos e que devem combater os outros homens, até que eles digam: Só há um Deus, Alá.

As encenações populares sobre o nascimento de Jesus guardam significados nem sempre perceptíveis a um observador desatento.  No auto de reisados, homens vestidos de vermelho e azul, enfileirados em dois cordões, representam mouros e cristãos em seus combates. Armados de espadas, eles se desafiam recitando embaixadas, que rememoram lidas medievais.

Podemos perguntar como e para que se guardou essa memória. Talvez as lutas entre muçulmanos e cristãos tenham sido tão sangrentas, que as suas marcas não se desfizeram. O teatro tem a função de rememorá-las, para que os erros não se repitam. Orientais e ocidentais já se mataram bastante. Agora, basta-nos a simbolização das guerras.

Os historiadores leem na cena do presépio de cerâmica que o Oriente se dobra ao Ocidente. É bem provável que a intenção do artista anônimo fosse um gesto de paz. Como na humilde brincadeira do pastoril, em que uma menina, a Diana, veste-se com as duas cores rivais, o vermelho e o azul, propondo a reconciliação dos inimigos. Será que apenas na arte é possível o encontro da Estrela com o Crescente?

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