03 jul A espada e a cruz
Na cidade do Crato, Ceará, havia uma biblioteca diocesana de
poucos livros, quase todos ruins. Refugos de coleções particulares, aquilo
que não se quer guardar porque não presta e só ocupa espaço. Mas livros
são sempre livros e num país de poucos leitores jogá-los fora é quase um
crime.
A bibliotecária pertencia à Congregação Mariana e usava uma fita
azul no pescoço, com medalhas e escapulários de Nossa Senhora. Como os
frequentadores eram raros, ela ocupava o tempo rezando ou fazendo
crochê, deixando que a poeira e as traças cuidassem do resto. Foi no meio
dessas prateleiras rudes, repletas de brochuras velhas que eu tive a primeira
impressão de uma biblioteca.
Entre as preciosidades, uma se destacava: a coleção dos Grandes
Romances do Cristianismo. Li todos. O livro que mais me impressionou foi
Perseguidores e Mártires. Em quase quinhentas páginas se contava como
foram mortos centenas de cristãos, queimados em fornos, cozinhados em
azeite, arrancados os olhos, devorados por leões e tigres no Coliseu,
crucificados, afogados e apedrejados. Um verdadeiro tratado das
perversidades humanas, carregado nas cores para enfatizar a coragem e
santidade dos primeiros cristãos. A bibliotecária percebia o meu horror e
fascínio por aquela carnificina e dava jeito de encontrar mais histórias
escabrosas para eu ler.
O que não era capaz de fantasiar, lendo os livros, o cinema da época,
pródigo no mesmo tema, completava com imagens. E haja palácios
romanos com filas de cristãos amarrados em postes, ardendo em chamas, e
mais crucificados, e santinhas devoradas por feras, tudo pela justa causa da
fé. Minha sensibilidade infantil ficou irremediavelmente marcada. Dez
anos de psicanálise não conseguiram reverter o estrago.
Comparados aos violentos filmes americanos de hoje, todos esses
dramalhões históricos são “água-com-açúcar”. Dá pena e vontade de rir.
Um único filme da “sessão da tarde” vale por cem desses “filminhos” de
mártires. Mais que mudança de tempo e estilo, o que aconteceu foi uma
banalização da violência. Numa cena reproduzida por Fellini, em
Amarcord, a platéia de italianos chora ao assistir o melodrama A Espada e
a Cruz. Cena inconcebível nos dias de hoje.
Mergulhando nas leituras, eu me perguntava por que milhares de
pessoas se reuniam no Coliseu romano para ver pessoas trucidadas das
formas mais cruéis. Não compreendia como Roma se arvorava centro
cultural do mundo, povo mais civilizado da terra, chamando de bárbaros os
que estavam além das suas fronteiras. Consolava-me dizendo: “O tempo
que vivo é outro, o homem contemporâneo tornou-se melhor. Ele já não se
entrega ao prazer da violência pura, nem se deleita com o sofrimento dos semelhantes”. Eu era jovem e faltava-me uma qualidade que só adquiri mais tarde: discernimento.
A história recente tem provado que fui otimista, acreditando que os
homens e as nações evoluíram para melhor. Que os aparatos engendrados
em Roma para mostrar a força e o poder do império, mantendo hipnotizada
a grande massa, fazem parte do passado. Existem outros mecanismos, com
o mesmo objetivo. Agora, a plateia assiste ao circo sem sair de casa.
Confortavelmente sentada, comendo pipoca e tomando Coca-Cola, ela
presencia em tempo real a Síria sendo bombardeada. Vê multidões de
famintos pelas ruas de cidades destruídas, crianças queimadas, prisioneiros
feridos e humilhados, em nome de “ideias abstratas que celebram a
excepcionalidade americana, russa ou ocidental, e veem os outros povos e
culturas com desprezo e descaso, apenas como fonte de mais
enriquecimento, expansão e poder”.
Estados Unidos, Inglaterra, França e Rússia se assemelham ao
Império Romano ao mostrarem o novo circo aos mais de sete bilhões de
habitantes do planeta, através da televisão. Como no Coliseu dos filmes
americanos de terceira categoria é o imperador Trump ou Putin ou outro
qualquer quem levanta e baixa o dedo, condenando vítimas, enquanto um
primeiro ministro inglês ou francês serve a taça de vinho para o brinde.
Alguma coisa mudou?
Em Roma, bem poucos ficavam fora do Coliseu. A voz do filósofo
Cícero, protestando contra a barbárie, era solitária. A turba romana
levantava os dedos pedindo clemência para o gladiador condenado, sobre
cujo peito pairava uma espada. Cabia ao imperador decidir sobre a vida ou
a morte. Foi Bush, apoiado pelo voto de setenta por cento dos patrícios
americanos, quem decidiu até quando a espada entraria no peito dos
iraquianos e de outros cidadãos do mundo.
Mas a vítima nem sempre é passiva, também reage ao inimigo,
mesmo que suas armas sejam precárias. E nisso ela não está sozinha. Do
lado de fora do Coliseu milhões protestam. Pessoas para quem a América
tornou-se bárbara. A gloriosa América de Whitman, com o sonho de
democracia e fraternidade, já não merece o canto do mais ilustre poeta:
Fora com os temas de guerra!
Fora com a própria guerra!
Saia de minha vista repugnada
para não voltar mais
aquele espetáculo de cadáveres
enegrecidos e mutilados!
Aquele inferno indescritível
e recoberto de sangue
bom para tigres selvagensou lobos de línguas ávidas,
não para seres humanos
dotados de raciocínio!
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