Uma crise sem nome | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Uma crise sem nome

O homem de joelhos olha um ponto indefinido no horizonte e no futuro, após atravessar por baixo a barreira de arame farpado. Seu rosto possui uma expressão antiga, como as representações em cerâmica dos reis assírios, da antiga Mesopotâmia, relíquias preciosas destruídas pelos americanos e ingleses que bombardearam o Iraque e, mais tarde, pelo Estado Islâmico. A “barbárie” a que se referem americanos e europeus não é atributo apenas de um povo.

Absorto no olhar investigador, o homem parece indiferente à menina que chora desesperada, talvez porque os grampos do arame feriram seu corpo frágil. A mãe também já conseguiu livrar-se da barreira e tenta consolá-la, acariciando-a com a mão direita, enquanto sustém no braço esquerdo o filho pequeno, um menino a ponto de cair. Do outro lado da cerca, um rapaz suspende os arames, a expressão aflita. Teme ser retido, antes da sua travessia. O rosto possui os mesmos traços dos povos arcaicos, as civilizações que nos legaram a maior parte do saber.

O parágrafo acima não se trata de um exercício de descrição, daqueles que fazíamos na quarta série primária, olhando imagens toscamente coloridas. Trata-se de uma das milhares de fotos que todos os dias aparecem nos jornais e na internet, algumas tão comoventes que mudam o sentimento das pessoas em relação ao drama vivido pelos que tentam fugir da guerra, perseguição e pobreza, no Oriente Médio e na África.

São migrantes, refugiados ou clandestinos? Perde-se tempo buscando a palavra certa para defini-los, evitam reconhecer que se trata de refugiados, pessoas buscando refazer suas vidas, longe da pátria insalubre. Países como a Inglaterra e a França, que colonizaram a África e o Oriente Médio, enriquecendo às suas custas, fecham as portas e tentam barrar a entrada dos indesejados. Esquecem quando ocuparam o mundo inteiro com seus exércitos, sem pedir licença nem atravessar cercas de arame.

As fileiras de homens, mulheres e crianças se deslocando a pé também lembram os retirantes nordestinos fugindo à seca. A dor, a desolação e a miséria são as mesmas. Os nordestinos caminhavam dentro de um território chamado pátria, falavam o mesmo idioma, mas nem por isso estavam imunes à rejeição, ao desprezo e ao preconceito.

Dos campos de concentração cearenses da década de 30 – os Currais do Governo –, às propostas de barreiras migratórias em alguns estados do Sul e Sudeste, os fugitivos da seca enfrentaram barreiras reais e simbólicas, tão intransponíveis quanto as cercas de arame farpado do leste europeu. E toda vez que eles mesmos buscaram soluções para a miséria, em aglomerados como os de Canudos e Caldeirões, foram reprimidos pela força, mortos e destroçados, como se representassem ameaça à ordem estabelecida pelos mais poderosos.

Essa relação se alterava bruscamente quando havia interesse em mão de obra barata, semi-escrava ou escrava, como no ciclo da borracha amazônica, da construção civil em São Paulo, da edificação de Brasília e da ponte Rio/Niterói, na expansão de fazendas no Mato Grosso e Goiás. Nesses casos, fazia-se um trabalho de aliciamento dos sertanejos analfabetos e miseráveis, através de folhetos de cordéis, violeiros repentistas e de pessoas treinadas para seduzi-los com promessas de enriquecimento fácil. A realidade se revelava bem distinta do sonho. O tráfico escravo da África para o Brasil, em navios negreiros, mudava-se em tráfico do Nordeste para o Sudeste, Centro Oeste e Norte, em barcos a vapor e caminhões pau-de-arara.

Fluxo ou crise migratória? Chega um tempo em que a única chance de não morrer é partir. Isso nada tem que ver com nomadismo, expansão de território, busca de um guru espiritual. Foge-se da miséria. E esse trânsito muda a feição do mundo. Foi sempre assim, desde o começo da história. E não adianta criar barreiras, interdições, porque nada contém essa força em deslocamento. O Brasil mudou graças a ela e a Europa certamente mudará. Para melhor, tenho certeza.

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