19 set Admirável mundo virtual (tecnologia, isolamento, solidão)
Jantamos num bistrô do Recife. Na mesa à direita, um casal se distrai com os smartphones. A moça vez por outra mostra imagens ao acompanhante. Apressado, o rapaz afasta os olhos do seu aparelho, vê o que a esposa lhe aponta – reparei nas alianças fornidas na mão esquerda –, faz comentários monossilábicos e retorna às próprias investigações. A moça, que me parece grávida ou um pouco roliça, ri bastante, tentando chamar atenção do marido. Não tenho dúvida, os dois são casados, a aliança no dedo esquerdo parece uma argola. O garçom traz a carta de vinhos e ele pede cerveja. Ela prefere coca zero. Servem a entrada, uma linguine de pupunha, com laranja, agrião, queijo de cabra holandês e bottarga. O casal belisca a iguaria sem desligar-se das telas, os dedos movendo-se nos teclados com a agilidade de um caixa bancário contando cédulas. O garçom traz a segunda cerveja, ele bebe, ela descansa as pernas sobre o sofá, está mesmo grávida, o obstetra recomendou manter as pernas elevadas para evitar edema e varizes. Contempla o futuro pai sentado à frente, esboça mostrar algo, porém recua a meio caminho, o smartphone quase tocando a linguine fria. Durante longo tempo os dois ficam mudos, como se uma parede de blindex os separasse. O garçom traz os pratos, os esposos interrompem a comunicação em rede e admiram o jantar conceitual do chefe francês, fotografam, postam no facebook e mastigam em silêncio.
Na mesa à esquerda, três mulheres sentam num sofá. Uma delas, sozinha, se exercita freneticamente no seu smartphone computador/câmera fotográfica/GPS/conselheiro sentimental/astrólogo… As outras olham fotos num tablet. Por mais que alongue o pescoço não consigo ver as imagens. Consolo-me dizendo que não se trata de nada imperdível, pois as duas bocejam entediadas. Dois homens sentados em cadeiras, de frente para as três mulheres, falam animadamente de negócios, enquanto tomam vinho. Ao lado deles, alheia a todo ambiente, uma jovem silenciosa contempla as flores de um jarro pequeno.
Voo do Recife a Londrina, aguardo embarque durante quatro horas no aeroporto de Guarulhos. Releio as cartas de Rilke a um jovem poeta, sublinho com lápis que “se imaginarmos a existência do indivíduo como um quarto mais ou menos amplo, veremos que a maioria não conhece senão um canto do seu quarto, um vão de janela, uma lista por onde passeiam o tempo todo, para assim possuir certa segurança”. Passeio aborrecido entre pessoas que também esperam aviões, ocupadas com aparelhos celulares de tecnologia infinita. Abandonei a leitura de O Som e a Fúria, porque já não suportava o relato de um débil mental. Porém o traçado das salas de espera por onde caminho, depois de ter revisado uma conferência pela décima vez, não é menos maluco. Um rapaz senta junto de mim, retira uma banana da mochila e come-a com sofreguidão. Gesto insólito, perfeito para um diálogo. Mas ele saca um headphone da bolsa, liga-o no celular, acompanha com os pés a música que eu não escuto, balbucia palavras em inglês.
Ninguém é mais saudável do que Benjy, o doidinho de Faulkner, que chora por tudo. Também vou chorar, não prestam atenção em mim. Ninguém olha para ninguém, ninguém escuta ninguém, ninguém fala com ninguém, ninguém lê livros – o que seria pretexto para um início de conversa –, todos com seus fones, os ouvidos tapados para o mundo, os olhos recusando-se a ver o que não seja uma tela. E se eu disser ao rapaz comedor de bananas que “somente quem está preparado para tudo, quem não excluiu nada, nem mesmo o mais enigmático, poderá viver sua relação com outrem como algo de vivo, e ir até o fundo de sua própria existência?” Ele irá rir e trocará de cadeira.
Onde se escondem os leitores brasileiros? É o tema de minha conferência em Londrina e Curitiba. Nesse aeroporto eu não enxergo nenhum deles. Mas preciso ter essa resposta na ponta da língua, uma conversa afiada que justifique o cansaço da viagem, os trocados que me pagam. Onde estão os leitores invisíveis? Eles são como as cidades de Calvino, chega-se a eles por caminhos indiretos, percursos enviesados, sem jamais alcançar o âmago. “A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali”. Ninguém entra na cidade dos livros. Eu continuo preso nela, como um Sísifo ou Prometeu fazendo a apologia da própria condenação.
Felizmente a aeronave. Logo mais o hotel, o quarto, a cama, depois de um voo de 45 minutos. Sentados atrás de mim, o jovem casal e a filhinha de meses. A menina gargalha precocemente, os pais cochilam. Por que a menina ri? Ainda ignora a existência de “uma lista” por onde passeará seus dias. Os pais certamente acreditam que “em redor de nós não há armadilhas e laços, nada que nos deva angustiar e atormentar”. 45 minutos passam ligeiros. O comissário de bordo anuncia que o avião iniciou descida, pede que elevem os recostos das poltronas, recolham as mesinhas, desliguem os aparelhos eletrônicos. A menina grita alucinada. Também sinto dores nos ouvidos, sou como as crianças que não desenvolveram completamente o sistema auditivo. Felizmente pousamos, os avisos de atar cinto continuam acesos, os passageiros se apressam em ligar os Smartphones, antes de abrirem as portas do avião. A menininha volta a rir alto. Quando me levanto, cumprimento o casal. Digo que sou médico, explico que os bebês choram nos pousos das aeronaves porque sentem dores nos ouvidos. O casal troca olhares. O pai explica que a filha costuma viajar e não sente nada. Ela gritava porque tiveram de desligar o filminho que assistia no tablet. Percebo a engenhoca religada. A criança ri, agita-se, bate na tela com as mãozinhas. Uma princesa feliz para sempre no seu castelo virtual, igualzinho aos contos de fada.
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