Assassinaram o autor (teatro, poesia, anedota) | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Assassinaram o autor (teatro, poesia, anedota)

O que mais desagrada no teatro contemporâneo é o descuido com o texto. Como existe um consenso de que os espetáculos devem ser curtos, porque ninguém tem mais paciência de ficar ouvindo os atores declamarem as falas, todo encenador se acha no direito de picotar as peças alheias, sem a menor piedade. Antunes Filho, um dos mais renomados diretores brasileiros, reduziu o Macbeth de Shakespeare a uma encenação de pouco mais de cinquenta minutos. O Romeu e Julieta do Grupo Galpão, de Minas, foi reescrito por um dramaturgo, que eliminou parte da trama e dos personagens.  Os resultados foram bons, nos dois casos, mas são exceções.

         Justificam o maltrato dizendo que o público acostumou-se com as cenas ligeiras da tevê e do cinema americano. Para a nova geração prevalecem as imagens. Quem ainda se interessa por metáforas e poesia? O Racine dos versos alexandrinos, só adaptado. De preferência, em hai kai. O tempo é da conversinha de bar, onde a música abafa as vozes e não se escuta o que o outro está dizendo. Cada um fica no seu papo isolado, falando para si mesmo. Ionesco percebeu esse solilóquio do homem moderno e as falas dos seus personagens nada mais são do que monólogos absurdos. Que os diretores transformam em gritos, porque outra característica dos espetáculos é serem gritados, as vozes num diapasão altíssimo, como se a plateia fosse surda. Os atores não modulam a voz, começam o espetáculo numa altura e permanecem nela até o fim. O filme Gritos e Sussurros, de Bergman, se reduziria a Gritos, na versão teatral brasileira.

         Num festival famoso, o prêmio para melhor texto original não foi concedido porque não havia textos originais. Optou-se, com muita generosidade, em se conceder um estímulo à dramaturgia, eufemismo usado para entregar o prêmio a um grupo que encenou uma lenda. No mesmo festival, um diretor resolveu desconstruir o poema Morte e Vida Severina, reescrevendo-o em prosa. Foi um desastre. João Cabral perdeu a força poética, em falas coloquiais e prosaicas sem nenhuma expressão dramática. Os conhecedores de João Cabral teriam dúvidas sobre o autor que estavam encenando, a não ser que tivessem lido o programa. E não adianta protestar. Os encenadores tripudiam sobre vivos e mortos.

         Reconheço que não é fácil assistir a um Hamlet na íntegra, mesmo em vídeo, na montagem de Kenneth Branagh. Não temos nada em comum com os cidadãos ingleses do passado, que se apinhavam no Globe Theatre, em Londres, para verem as tragédias e comédias de Shakespeare. Recebemos mais informações em um único dia do que um cidadão inglês do período elisabetano recebia em toda sua existência. Talvez decorra desse ritmo acelerado a nossa impaciência, desconcentração e ânsia por impressões novas, sucessivas e rápidas.

A escuta de um texto exige serenidade, o que perdemos há muito. Habituamo-nos a clipes que chegam a ter sessenta imagens diferentes em um único minuto. Como desejar uma plateia silenciosa e atenta, com ouvido de psicanalista, se nos condicionaram à desatenção e perdemos o dom da escuta. Na Grécia Clássica, os festivais de teatro chamavam-se concursos poéticos. Interessava mais ouvir a poesia declamada do que ver a encenação.

Esse gosto pela poesia tem uma história famosa que hoje parecerá anedota. Ludovico Ariosto, poeta italiano do século XVI, que escreveu o Orlando Furioso em estrofes de oitavas, caiu em desgraça junto ao seu mecenas. Como castigo, recebeu o governo de uma província, a Garfanhana, região retirada e perigosa, infestada de bandoleiros criminosos, que a tinham transformado em quartel-general do crime. Segundo Pedro Garcez Ghirardi, já quase à entrada da província, ao percorrer a estrada solitária que para lá conduzia, o novo governador foi atacado por um bando de salteadores. Mas, ao obriga-lo a entregar tudo o que levava, perceberam que ele tinha consigo o Orlando Furioso. Perguntaram-lhe então, se conhecia o autor daquela obra. Ao saberem que estavam diante do poeta, os bandoleiros não só lhe devolveram tudo, como o deixaram seguir entre aclamações, enquanto recitavam episódios do poema.

Será que os bandidos da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, tratariam João Cabral melhor do que os seus encenadores? Não sei responder. Mas com certeza a poesia já não goza o mesmo prestígio e respeito que na Renascença. Nem entre os bandidos.

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