18 mar E o sexo em tempos de coronavírus?
Dizem que o Recife é a cidade com maior número de farmácias por habitante. Não consultei o livro Guinness, mas acredito que seja mesmo. Tudo por aqui é o mais, o melhor, o maior, ou o pior. Ter excesso de farmácias é indício de que as pessoas estão doentes e por isso se vende muito remédio.
Fui numa drogaria perto de casa, comprar um shampoo para caspas. Essa rede de supermercados farmacêuticos está destruindo o patrimônio arquitetônico da cidade. A cada esquina botam uma casa ou sobrado abaixo e, no lugar, constroem um caixote padrão, que se repete a ponto de nos confundir. Nunca sabemos se estamos em Casa Forte, Graças ou Madalena. Até o sorriso e o sotaque impostado das atendentes é igual.
– Boa tarde! Pois, não?
Vez por outra assaltantes invadem as farmácias, depenam os clientes de celulares, bolsas e relógios e levam o dinheiro dos caixas. A polícia chega com sirenes ligadas, ouve-se disparos. Temos a impressão de que entramos no filme “Um tira da pesada”. É tragicomédia, sim.
Ontem, encontrei a farmácia cheia, os mais jovens usavam máscaras, uma moça bem nutrida se exibia com um modelo rosa, que não consegui ver de perto e fiquei na dúvida se era plástico ou cetim.
– Onde você comprou? Quis saber a moça do caixa.
Não escutei a resposta porque me chamou atenção as prateleiras repletas de vitamina c, antitérmicos e energéticos. Clientes enchiam as cestas e procuravam ofertas milagrosas. Máscaras, luvas, toalhas e lenços de papel tinham esgotado.
– Álcool gel?
– Álcool gel? Acabou, mesmo. Dizem que tem gente vendendo a 50 e a 100 reais o tubo.
Reparo que as pessoas idosas não usam máscara. Talvez saibam que ela só tem indicação para quem é contaminante ou profissional de saúde. Todos cuidam em manter distância, não aproximar os corpos. Na campanha da AIDS, insistiam para não se descriminar os portadores, não temer o abraço, o aperto de mão, o beijo social. O aidético precisava carinho e proximidade. E agora? Mandam que os idosos se afastem até mesmo dos seus netos. Na AIDS, orientavam a vestir o pênis na hora do sexo. O resto se garantia. Agora… O que significa esse zelo, o isolamento, a prisão domiciliar, a proibição de qualquer atividade social?
Uma senhora esbraveja porque acabou o paracetamol de 750 mg. Como pode, num tempo desses? Resta apenas o de 500. Não tem álcool gel, não tem álcool gel, não tem álcool gel, canso de ouvir. A garota de máscara rosa, desfila exibindo o troféu rosa. Ninguém se aproxima. Quando fui escritor residente na Universidade da Califórnia, em Berkeley, pediram que eu não olhasse nem tocasse as pessoas como costumo fazer no Brasil. Quem seremos depois da AIDS? me perguntava quando surgiu a doença. O que seremos depois do coronavírus? Melhores, piores? Quem vai lucrar, que sistema político, que economia, que país? Todos perderemos?
Um idoso, na fila preferencial, ironiza: as pessoas não querem esta fila, em tempo de coronavírus. Quando lhe perguntam o CPF, se recusa a informar. Não vai declarar o imposto de renda, estará morto, confessa deprimido. Também perdi o humor em Berkeley. Não podia abraçar ninguém, nem beijar, e recebia os estudantes com a porta da minha sala aberta. Os corpos americanos são lacrados, nós brasileiros seremos lacrados pelo coronavírus.
– Como vocês fazem sexo, perguntei aos alunos de Berkeley, se não se tocam? Houve um mal-estar geral. Como faremos sexo em tempo de coronavírus, se nem a mão das pessoas apertamos? Camisinha não protege contra o vírus.
A fila do caixa cresce, as pessoas compram mais remédios. Linus Pauling recomendava 6 gramas diárias de vitamina C. Ganhou o Nobel de química e da paz. Tome um tubo inteiro de Redoxon efervescente. Os laboratórios Bayer agradecem.
Um senhor aparentando 50 anos se aproxima dos caixas, a cestinha vazia. É bonito, viril e transpira saúde. Parece inseguro, intimidado pelos clientes. Finalmente, adquire coragem e se aproxima de uma gôndola, quase colada aos caixas. Por que fazem a maldade, deixam esses produtos tão à vista? Por que não expõem em lugar mais discreto? Num ímpeto, sem escolher as marcas, joga pacotes de camisinha e gel lubrificante na cesta. As pessoas olham para ele estupefatas, as atendentes escandalizadas. Que compra é essa meu senhor? parecem perguntar.
Não me contenho e gargalho alto. Agora, todos se fixam em mim. Ri porque lembrei um poema de Apollinaire, “A vaselina”:
Praça da Ópera: por uma farmácia a dentro
Entra um senhor bem-posto, feito um pé-de-vento:
“Estou com pressa”, diz. “Eu quero vaselina.”
Gentil, o boticário indaga do cliente
Impaciente
A que uso se destina
O graxo ingrediente:
“Se for para o rosto, é melhor levar da fina…
Qual?
Que tal
Este artigo
Que o senhor sem perigo
Pode no rosto usar?
Eu, por mim, recomendo sempre a boricada.”
E o cliente, a bufar: “Mas que papagaiada!
Pouco me importa qual, pois é para enrabar!”
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