22 mar A quem interessa o medo do coronavírus?
Da varanda do meu apartamento, debruçada sobre o bairro de Casa Forte, no Recife, contemplo a manhã de domingo. Olho de uma altura equivalente a treze andares. Lá embaixo, na faixa de cor vermelha, nenhum ciclista ou corredor, ninguém sobre skates ou patins, nem mesmo um tímido caminhante. Alguns empregados domésticos passeiam os cães dos patrões ausentes, talvez isolados em praias ou condomínios de serra. Bem-te-vis, rolinhas, sabiás e sanhaçus cantam. Há muitas aves no bairro: bicos- de-lacre, papa capim, lavandeiras, beija-flores, anus e até gaviões. Não é difícil escutá-los nos dias comuns da cidade barulhenta, sobretudo de madrugada.
Hoje, domingo, não tocou o sino da igreja da Harmonia, nem se ouviu o coro do templo presbiteriano. Numa esquina, um fiel evangélico decidiu ligar o som paredão do carro com músicas doutrinárias sobre Jesus e a salvação da alma. Ontem, no final de tarde, o carro de um deputado e seu filho vereador espalhava a pregação de medidas preventivas contra a pandemia. Senti-me vivendo um novo tempo, ao qual ainda não me acostumei e do qual talvez sobreviva sequelado.
Comecei a fazer medicina há cinquenta anos. Sou casado com uma médica, tenho uma filha e uma nora com formação em medicina de família e comunidade. Minha filha está à frente das campanhas e ações para o controle da doença. O esposo dela também é médico e há mais cinco membros da nossa família nuclear que exercem a medicina. Estamos, portanto, estudando, pesquisando, nos informando sobre o coronavírus e suas maneiras de adoecer a população.
Desde os primeiros casos surgidos na China, tentei afastar-me das informações sujas, contaminadas de más intenções, manipuladas e manipuladoras. Procurei a orientação de médicos que atuam na saúde pública, na medicina de família e comunidade, infectologistas e sanitaristas. Eles possuem uma visão global da pandemia, interpretam-na sob um ponto de vista não estritamente técnico, mas também sociológico, filosófico e se preocupam com a nossa saúde mental.
A Igreja Católica manipulou o medo das pessoas durante séculos, sobretudo na idade Média. O terror pregado era a ameaça de um inferno depois da morte, onde as almas sofreriam pela eternidade. Nascia-se com o pecado original, que apenas o batismo era capaz de apagar. Na fábula do Grande Inquisidor, criada por Dostoievski no romance “Os irmãos Karamazov”, Cristo retorna à Terra e volta a pregar a liberdade aos homens. É preso e recebe a visita do Inquisidor, que diz reconhecê-lo e o acusa de não ter o direito de voltar a oferecer às pessoas serem livres. Afirma que a liberdade é um bem insuportável, o homem não consegue viver com ela. Que custou muito à Igreja, depois que Ele morreu crucificado, tutelar a humanidade pelo medo e se apropriar da liberdade de cada um.
No teatro, nos habituamos a buscar o subtexto do que lemos, aquilo que se esconde por detrás da realidade e das intenções aparentes. Na atual pandemia do coronavírus, além de esforçar-me para não sentir medo, tentei ler o subtexto das campanhas de prevenção. A quem interessa nos manter reféns do medo? Não existe mais poder na Igreja Católica e há muito deixou-se de temer o inferno que ela pregava. Os que reagiam aos dogmas, eram presos, torturados e queimados em fogueiras. Agora, em nome da salvação dos nossos corpos – não se trata mais da salvação da alma – somos confinados em casa, proibidos de ver os familiares e amigos, ameaçados de multas e prisão se transgredirmos. A quem entregamos a tutela da vida e da liberdade? Ao Estado? A um Poder Econômico? Ao Saber da Ciência? Mas por que interessa além de nos informar, nos amedrontar?
É sutil como a nova religião e o novo Deus, se apropriam do discurso preservacionista da Igreja Católica Medieval: um embasado na teologia e o outro na ciência. No catolicismo, os corpos eram deserotizados, proibia-se o toque, o olhar, a proximidade, os banhos. Podiam ser usados com o único objetivo de perpetuar a espécie. Assim, garantia-se a salvação da alma para Deus. Agora, o corpo não abraça, não beija, não se aproxima de outro corpo, não fornica, submete-se a uma contínua assepsia com água, sabão e álcool. Tenta salvar-se para continuar vivo neste mundo.
Os dogmas da Ciência são leis, não se pode desobedecê-los. A transgressão gera o medo, o terror da doença e da morte. Há promessas de salvação se tudo for cumprido à risca, sem nunca se incorrer no pecado da desobediência ao que se tornou lei. Depois de todo esse sacrifício, é possível que se abram as portas de um novo inferno, onde o Medo continuará assolando. Diferente, talvez maior ou menor, mas sempre Medo.
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