Diário do isolamento | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Diário do isolamento

(quinta-feira, 02 de abril)

Hoje é o dia em que vou à feira do mercado de Casa Amarela para a compra de frutas, verduras, legumes e carnes. Com a quarentena, peço pelo telefone ao feirante que mande o pedido em casa e faço o pagamento num depósito bancário, pelo celular. Muito cômodo, prático e com o mínimo de risco para mim. Meu isolamento está garantido. Mas, e o de Seu Edriano, o feirante?

Irmão Ano, como ele é conhecido, pois se trata de um evangélico, sai de casa para a Ceasa às 04 horas da manhã. Lá, ele adquire as mercadorias com as quais abastece suas duas barracas, sempre produtos de ótima qualidade. Passo a lista do que necessito pelo WhatsApp. Um carregador, Quinho, faz a entrega de bicicleta. Quinho também passa em Dona Moça, uma senhora de 76 anos, que trabalha com o marido de 83, vendendo carne. O casal marchante mantém o ponto há 50 anos. Tudo é encomendado por telefone, mas tem de ser pago em espécie. Talvez por conta da idade, os dois velhos não usam cartão, nem conta bancária.

As autoridades sanitárias afirmam que os ricos e viajantes trouxeram o coronavírus para o Brasil. É possível, pois de início foi esta classe que mais adoeceu. Agora, a doença começa a se disseminar entre os mais pobres e miseráveis, que não têm seguro saúde, nem condições de se isolarem. As campanhas mandam que as pessoas fiquem em casa. Irmão Ano, Dona Moça e Quinho estão trabalhando, se expondo, garantindo nossa sobrevivência e isolamento, correndo risco semelhante ao que os médicos correm.  Que lei de reclusão é essa, que só funciona para os favorecidos economicamente?

Os pobres precisam escolher entre morrer de fome na quarentena, ou arriscar-se a morrer trabalhando e garantindo o que comer. Dura metáfora. Terrível enigma esse que lhes propõe a esfinge.

Recebo as compras na garagem do prédio. Não uso máscara, nem luvas. Mesmo assim, Quinho estranha que eu não lhe estenda a mão em cumprimento, o que sempre faço, e recue a qualquer avanço do seu corpo em minha direção. Ele se oferece para subir com a feira, mas agradeço (uma recusa, na verdade). Sinto-me estranho, como se estivesse me deformando. Tudo o que aprendi de civilidade se esboroa, se desfaz. Temo o futuro. Serei bem pior se sobreviver a esse tempo de deseducação.

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1 Comment
  • Jonathas Oliveira
    Posted at 23:41h, 06 abril Responder

    Nós não seremos mais os mesmos após esse evento na trajetória da humanidade.

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