19 abr Diário do isolamento 10 – Domingo sem música
(domingo, 19 de abril)
Domingo sem música
Comecei o dia cheio de planos de ouvir Bach. No último mês, sobrevivi em parte, graças a ele. Assisti pelo YouTube à Paixão Segundo Mateus, na regência de Van Veldhoven, com a Netherlandas Bach Society. O oratório dura cerca de três horas, mas é comovente e genial. E nos eleva, dá força, ao invés de deprimir. Vi três vezes, durante a Semana Santa. Também assisti uma versão com regência de Philippe Herreweghe, mais longa, apesar de alguns trechos suprimidos, bem mais lenta e menos empolgante. Vale para quem assiste pela primeira vez, porque tem as legendas do libreto, com indicação dos personagens que cantam. Mas senti-me atrapalhado pela leitura, perdi bastante a emoção da música.
Também assisti a Paixão Segundo João, o Magnificat, várias cantatas, uma suíte para orquestra e todos os concertos de Brandenburgo, favoritos de minha neta de quatro anos. Um escritor judeu húngaro, que escapou do stalinismo e do nazismo, revela ter sobrevivido graças à música de Wagner. Parece contraditório, porque as óperas de Wagner alimentaram o nacionalismo alemão e o nazismo. Mas a arte não possui dono nem identidade. Ela só existe a partir do instante em que alguém a recria e sente, lhe emprestando nova dimensão. Devo minha vida a Bach.
O escritor húngaro percebia que a criação foge aos rótulos e à propriedade. Wagner é mais do que o nacionalismo que o alimentou e ajudou-o a compor suas óperas, mais do que Hitler e o antissemitismo. Quando ouço Bach, esqueço certos fantasmas me assombrando. Entro numa ordem de grandeza em que eles não transitam, felizmente.
Não pude ouvir Bach, nem terminar a leitura do novo romance de Altair Martins, Os donos do inverno, que estou adorando, nem reler uma história d’As mil e uma noites, nem concluir Orientalismo, de Edward Said, nem escrever. O dia foi gasto lavando banheiros, varrendo casa, limpando móveis, arrumando armários, estendendo roupas no varal. Um dia de tigelas, segundo a fábula zen. Há um mês nossos funcionários estão de quarentena como os patrões. Sinto o peso de morar numa casa grande, embora sempre tenha participado dos afazeres domésticos. Nos espaços estreitos até as ideias ficam estreitas, diz um personagem de Dostoievski, em Humilhados e ofendidos. Concordo, por isso aguento sem reclamar o excesso de trabalho. Se eu não trabalho, alguém trabalha por mim. Agora, cito a fala de um personagem de Tchekhov.
Minha neta que ouve Bach esteve na garagem do prédio onde moro. Nos olhamos de longe, fazendo força para não corrermos um para o outro. Essa dor e tristeza da separação Bach não consola.
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