21 abr Diário do isolamento 11 – Tiradentes e Caneca
(terça-feira, 21 de abril)
Tiradentes e Caneca
Hoje o dia amanheceu feriado, quase ninguém na pista de ciclismo e corrida, alguns carros, os mesmos escravos modernos transportando encomendas em suas bicicletas. É estranho o ócio dentro do ócio, enquanto um vírus continua trabalhando incansável e traiçoeiro. Há poucos ruídos na cidade, perguntamos pelos sons, aporrinhando nossos ouvidos. Será que voltamos a apreciar o silêncio, a falar mais baixo, a sentir o que é recolhimento? Não fosse o espectro da morte rondando, e o isolamento compulsório, me alegrava o tempo escorrendo lento, de sobra para ver o que já não víamos, ouvir as batidas do coração e a música de Bach, nas Variações Goldberg.
Um primo do sertão me enviou o vídeo do rio Umbuzeiro, com enchente. Estive em Aiuaba, nos Inhamuns, pelo mês de fevereiro, durante as filmagens de entrevista para o Canal Brasil. O rio que deságua no Conceição, e depois no Jaguaribe, estava seco. Nem acreditei que por detrás da casa do tio José Bezerra do Vale, construída em 1717, que se mantém de pé como a história do meu ancestral em oitava geração, pudesse correr um riacho. – Não é riacho, mas rio, corrigiram-me. Desculpem. É difícil imaginar água em meio às planuras secas e quentes, onde primeiro chegaram meus familiares, pastores rudes e seus rebanhos, multiplicando-se como vacas e cabras.
Chove muito no Ceará, há tempo não acontecia chover, e me sinto triste porque não posso viajar. Planejei percorrer o sertão onde nasci, ver casas antigas e fazendas, mais arruinadas do que quando eu as vi, há muitos anos. Lugares povoados de ausências e silêncio. Quase não sonho em viajar à Europa. Aos Estados Unidos, nunca. Minha vontade é percorrer o nordeste e o norte do Brasil, inventariar passado e presente, assunto para contos, novelas e romances. Sinto-me feliz no reencontro com o Brasil profundo, arcaico e extraviado na modernidade. A decadência e o transtorno são meus temas preferidos, porque neles eu enxergo um broto se gerando, a promessa de crescer e tornar-se diferente do que nos ensinam os modelos viciados.
Não viajarei aos Inhamuns, a pandemia cortou minhas pernas. Nada de banhos em riachos, rios, grotões, açudes e cachoeiras. Essas primazias são possíveis apenas na estação das chuvas. Até julho, ainda temos um clima agradável, o verde se mantém vivo, antes de amarelecer e chegar ao marrom e cinza. As cores que tanto estarreceram Euclides da Cunha, pela monotonia e repetição, levando-o a escrever um retrato grotesco dos sertões. Há os que amam o deserto e o calor, e os que amam a estepe gelada, que também queima a pele e resseca os olhos e os lábios como o sol mais quente do nordeste. Fomos esmagados pelo gosto eurocêntrico e norte-americano. Precisamos cultivar um gosto pelo Brasil, longe de nacionalismo falso e canhestro. Um amor como o de Caneca, republicano que merecia um feriado.
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