22 abr Diário do isolamento 12 – Descobrimento
(quarta-feira, 22 de abril)
Descobrimento
Não sonhei, embora o espanhol Calderón afirme que toda a vida é sonho. Na prisão, ondas invadem meu terraço, onde busco me concentrar na leitura de um livro. O maior bem é tristonho, leio. Lembranças retornam e não consigo afastá-las de mim. O menino de nove a dez anos usa calça curta, alpargatas de couro. Desde as onze horas subiu na carroceria de um caminhão e espera. Viaja à casa da avó, num sítio distante menos de trinta quilômetros, mas que parece longe na travessia por estradas de barro, ladeiras, riachos e atoleiros. Uma odisseia, ele não compara ainda, pois apenas com treze anos fez a primeira leitura de Homero.
O caminhão retarda, as pessoas chegam sem pressa com feiras, sacos, cestos, panelas de barro, sobem sem ajuda de escada, aos empurrões. Homens e mulheres de várias idades, gente do mato, beradeiros, as roupas domingueiras embora seja uma segunda, a fala pausada, o cheiro de aguardente e fumo de rolo, que enjoa o menino. Os tios e primos não aparecem, ocupados nos afazeres da cidade, os pequenos negócios de pouco lucro. Os passageiros mais ricos, com reserva na boleia, também não chegam. Esses sim, costumam se fazer esperar.
O menino chega cedo aos compromissos, tem medo de perder a hora, os olhos arregalados, a cabeça grande sonhadora, no mundo da lua. Três meses não é muito?, perguntou a mãe. Não, respondeu ele, imaginando dezembro, janeiro e fevereiro ao lado da avó. Quatro meses de férias e apenas oito meses de escola. Tempo grande? Já que a vida é tão curta, sonhemos, alma. Olhava a avó preparando a lapinha de Natal, os búzios achados na lama do rio, bichinhos de lã de ciumeira, carneiros, bois, jumentos. O Jesus Cristinho da tataravó, sem o pinto porque a tia mandara arrancar. E a cantiga que a avó desentoava: Quando eu vim para Belém, trazia a minha cestinha…
Primeiras chuvas de janeiro, muitas de fevereiro, inverno, plantios, umbus, cajaranas, banhos. As primas nuas nos grotões da serra, se banhando, e o menino escondido por trás dos matos, vendo o que imaginava ver. O açude tão grande, impossível de atravessar. Relâmpagos e trovões em noites assombradas. A avó puxava o neto para debaixo do paiol, construído com madeira forte de angico. Único lugar onde a casa velha do avô morto prometia não soterrá-los.
Rios arrastavam balseiros, árvores, bichos mortos, restos de construções. A correnteza não dava vau. Fevereiro findando, o carnaval perto, as escolas tocando a sineta de chamada, os livros todos lidos e relidos, a barriga saciada de frutos azedos, a saudade nos sonhos, da mãe, do pai, dos irmãos, dos colegas. O menino acorda, sabe que a vida é sonho e é preciso retornar ao outro sonho. Mas não há carros, nem caminhos, nem pontes.
Na companhia de um tio, à cavalo na garupa, olha a cidade embaixo. Ali também choveu e o lodo escorre das paredes. Desconhece o que lhe parecia certeza. Estranha seu mundo depois da longa ausência, sofre temor. Fecha o livro que tenta ler no terraço, olha o Recife lá fora, os morros de Casa Amarela. Como será tudo, depois do longo exílio? Reconhecerá? Será reconhecido? Quem determinou que ficasse preso? A troco de que aceitou o desterro? Barganha pela vida?
– Que delito cometi? Voa uma ave serena e deixa, contente e calma, seu ninho. E eu, que tenho mais alma, tenho menos liberdade? E eu, com melhor instinto, tenho menos liberdade? E eu, com maior vontade, tenho menos liberdade? *
- A vida é sonho – Calderón de La Barca, adaptado.
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