08 abr Diário do isolamento 3
(quarta-feira, 08 de abril)
Ontem à noite, depois das dez horas, olhei a Estrada do Encanamento de nossa varanda. Deserta de pessoas e veículos, parecia convidar-me a descer e andar por ela. Às onze seria o plenilúnio. Soprava um vento agradável, quase frio. Ponderei se valia a pena quebrar o isolamento, caminhar um pouco e sentir a cidade. A Encanamento foi uma das primeiras ruas que percorri ao chegar ao Recife, em 1969. A lembrança me ajudou a decidir. Transpus o portão como o fugitivo de uma cela.
“Acordo fora de mim: como fora nada eu via, ficava dentro de mim como vida apodrecida. Acordar não é de dentro, acordar é ter saída”. Lembrei os versos do Auto do Frade, de João Cabral. Que atordoamento, que júbilo! Como conheço bem e amo essa cidade, que me acolheu há mais de 50 anos. Nunca me senti refém dela, nem tive medo de percorrê-la a pé, qualquer hora do dia ou da noite. No Carnaval, vou do Cais da Alfândega, ao Pátio de São Pedro. De lá, por becos e ruelas cheirando a mijo, ganho o Pátio do Terço, onde maracatus celebram tambores silenciosos. Sozinho, a pé, sozinho. Gente que conheço e desconheço me para, me cumprimenta e abraça, pede para fazer selfies, subir em pardieiros escuros, de onde me apresentam a cidade que é sempre nova.
Foram vinte e um dias separado das ruas. Agora, tenho apenas uma rua, umazinha, gasta de tanto eu ver e conhecer. Mas como parece nova e limpa, os sons das televisões, as vozes escapando dos prédios. Homens quase despidos movimentam-se por salas e varandas, mulheres estendem roupas nos varais. O vento insiste em me cativar, me afaga, traz cheiros. Não há mangas nas mangueiras altas, acabou a safra. As castanholeiras soltam as castanhas, os corações de negro. Não há pitangas nas pitangueiras, nem ubaias nos pés de ubaia, nem sapotis, nem acerolas. Quando as árvores safrejam, os passeios me alimentam de alegria e frutas. Volto para casa saciado.
Quero ver tudo, matar a fome dos olhos. “Como estou vendo melhor essa grade, essa cornija, o azulejo mal lavado, a varanda retorcida! Parece que melhor vejo, que levo lentes na vista; se antes, tudo isso mil vi, as coisas estão mais nítidas”. É a fala do Frei Caneca, em seu caminho da prisão ao Forte das Cinco Pontas, onde será executado. Mas é de júbilo minha lembrança, de quem mesmo retornando à cela, traz a alma alimentada.
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