09 abr Diário do isolamento 4
(quinta-feira, 9 de abril)
Na Quinta-feira Santa, os caretas ganhavam as estradas, pedindo dinheiro aos moradores e roubando os sítios. Bando de homens vestidos de mulher, roupas emprestadas de mães, irmãs, esposas e filhas. Cobrindo os rostos, máscaras de papelão ou couro, agora de plástico. Marmotas assustadoras, que faziam os meninos correr. Na mão, o relho de couro cru, o tirso de bacante, usado para açoitar os que se atreviam a invadir a quinta do Pai Veio, O Judas. Improvisava-se a quinta com bananeiras e pés de cana, em alguma fazenda. Nela, se guardava o boneco de pano e cabeça de estopim, amarrado a um poste, e o lucro das esmolas e pilhagens.
O traidor de Cristo se inseriu no lugar de um personagem mais antigo do que ele, o Rei Divino, morto no equinócio da primavera para propiciar as plantações e as colheitas. O ritual celebrado no Egito, há milhares de anos, assumiu novas formas em várias mitologias, até ganhar o calendário cristão. Métodos da catequese, transformar e adaptar mitos pagãos em cristãos. Agora, no nordeste agrário brasileiro, dezenas de homens travestidos em mulheres choram o futuro do Veio Judas. Parecem as bacantes dos cortejos de Dioniso Baco, são ao mesmo tempo esposas e filhas, algumas grávidas do falo poderoso do Pai.
Meursault, personagem do romance O estrangeiro, de Albert Camus, preso por assassinato, conclui no seu isolamento que bastaria ao homem ter vivido um dia lá fora, esse tempo o abasteceria de memória. Vivi com intensidade os meus dias. Guardo memória deles e também de livros, filmes, teatro, dança, música… Tudo se organiza em sinapses, gerando imaginação e criatividade, que não se atropelam. Tornou-se impossível falar do que vivi sem recorrer ao que li. O Pai Veio Judas, que brinquei menino no sítio Boqueirão, lá no Crato, se transforma em Rei Divino, Adônis, Osíris, Dioniso, Baco, Cristo, Boi de Reisado, caretas que não me assustam, me enriquecem e tornam melhor, eu suponho.
Seria bom malhar o nosso Pai Veio misógino, ensandecido e decrépito, para que floresça um novo ramo na videira dos homens mulheres bacantes. Mas é impossível, a vontade de 59% dos brasileiros é a de que ele continue no trono. Quantas primaveras ainda teremos de esperar? Toda noite eu percuto uma matraca de quaresma, quando ele pronuncia loucuras para o Brasil ouvir. Sonho com o dia em que tocarei sinos de aleluia. Amém.
RAMON R. GUISANDE
Posted at 18:05h, 09 abrilMeu querido Ronaldo, Você não deu só o nó, sacramentou! Belíssimo ! os grandes poetas, escritores, nunca precisaram obviedades… você não é um cronista, mas sim, um grande escritor que privilegia o tempo que vivemos. Você não deu o nó, vc nos amarrou! obrigado por tão bonito escrito
Moncho Rodriguez