12 abr Diário do isolamento 6
(domingo, 12 de abril)
A grandeza das pequenas coisas
Contei diversas vezes uma fábula zen-budista, em palestras, escritos, aulas, a ponto de me apropriar da história. Um mestre zen muito famoso é procurado por um discípulo que lhe pede: Mestre, ensina-me o zen. O mestre o olha e, em seguida, pergunta: Você tomou sua sopa? E ele: Tomei, sim. E o mestre: Já lavou a tigela? O discípulo responde: Não. E o mestre, sorridente, o aconselha: Volte, lave a tigela.
Por esses dias, tenho varrido a casa, espanado móveis e objetos, passado ferro nas roupas, cozinhado e feito outras tarefas domésticas. Hoje me perguntei se reconheço a grandeza desses afazeres em que muitos se ocupam. Se creio, de verdade, que se alcança o zen lavando a tigela da sopa. Ou se é hipocrisia o que repeti muitas vezes: Todos os ofícios são sagrados e o escritor não é mais que o padeiro, nem o carpinteiro, nem o pintor de paredes. Deus não prefere o músico ao pescador, como preferiu o Abel que pastorava ovelhas ao Caim que cultivava a terra. E que “O sábio tudo realiza e nada considera seu. Tudo faz e não se apega à sua obra” *.
Habituei-me a trabalhar como médico, escritor e dramaturgo. Oscilava entre duas ordens de grandeza, uma mensurável e outra imensurável. O que o artista realizava me parecia impossível de medir e o trabalho do médico mensurável. Nesse momento em que espetáculos, lançamentos de livros, oficinas e conferências se encontram adiados, sem previsão de quando poderão acontecer, tudo isso adquire uma ordem de grandeza, o zen. Para alcançá-lo, preciso concentrar-me em lavar a tigela com o máximo de concentração, desapego e fé.
O sucesso, nesse momento difícil que atravessamos, consiste em enxergar grandeza nos pequenos fazeres. Deformados pelo consumo e pela volatilidade das coisas, perdemos sustentação, firmeza. Mais do que nunca, criamos para ser consumidos, de preferência por milhões ou bilhões. O compositor alemão Johan Sebastian Bach compunha oratórios para serem executados na igreja onde era mestre de capela. Era o bastante. Reconhecido no seu tempo, caiu no esquecimento durante cem anos, até que Felix Mendelssohn o trouxe de volta à luz. Bach criava para o seu tempo, movido por sua fé em Deus e pela sobrevivência.
A literatura atravessa uma de suas maiores crises. Para quem criar se não existem leitores? Por que insistir em criar, por exercício, por necessidade, ou porque não se sabe fazer outra coisa? Mais um enigma desse tempo indecifrável. Resta-nos o esmero e a concentração no lavar a tigela.
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