17 abr Diário do isolamento 9
(sexta-feira, 17 de abril)
Se cuide, pois o diabo anda solto
E ele pensou no diabo, em quem não acreditava. Quem pensou foi o médico Korolióv, no conto “Um caso clínico”, escrito pelo russo Tchekhov, em 1898. Guimarães Rosa também se ocupou com o tinhoso, no Grande sertão: veredas, tanto que deu um subtítulo ao romance: O diabo na rua, no meio do redemoinho…. Guimarães escreveu na primeira pessoa e se atormentou no personagem Riobaldo, na incerteza se vendera a alma a satanás. Quem vendeu-a de verdade a Mefistófeles, sem direito a desfazer o negócio, foi o Dr. Fausto. Em troca, recebeu juventude e vigor sexual para seduzir uma inocente jovem.
Outro russo, Mikhail Bulgákov, perseguido pelo regime stalinista, morreu com apenas 49 anos sem publicar sua obra mais importante, O mestre e Margarida. “Em uma tarde de primavera, satanás e seu séquito diabólico decidem visitar Moscou. Encontram poetas, editores, burocratas e todo tipo de pessoas tentando levar a vida em pleno regime comunista. E nada será como antes; seu rastro de destruição e loucura mudará o destino de quem cruzá-lo.”
O diabo anda solto pelo meio do mundo, embora, como Tchekhov, eu nem acredite nele. Mas como não acreditar, se toda a literatura ocupou-se desse sujeito de múltiplos perfis, ganancioso, louco por prazer e dinheiro, perverso, sempre urdindo e disseminando o ódio e a intriga, aliado dos poderosos e ricos, das forças armadas do mal, sedutor e ávido de poder.
O médico Korolióv pensava no diabo e tinha a impressão de que olhava para ele. Via o próprio demônio, aquela força desconhecida que estabelecera a relação entre os fortes e os fracos, um erro grosseiro que já não havia meio de corrigir. Ele não compreendia porque é preciso que o forte impeça o fraco de viver. Isto pareceria aceitável, mas somente num artigo de jornal ou num livro de estudo. Mas na bagunça da vida cotidiana, na confusão de toda a miuçalha de que são tecidas as relações humanas, aquilo já não era uma lei, mas uma contradição, uma incompatibilidade lógica, pois tanto o forte como o fraco tombavam vítimas de suas relações mútuas, submetendo-se involuntariamente a alguma força diretriz, desconhecida, situada fora da vida, estranha ao homem.
Assim pensava Tchekhov há 102 anos, assim parece o Brasil de hoje. O diabo da desigualdade social crônica, o que veio nas caravelas com os colonizadores escravagistas, trouxe o séquito da pandemia. Tornou-se visível e sem condições de transpor o abismo entre o mundo dos fortes e fracos. Igual à peste, a morte não escolhe ricos ou pobres, embora estes sejam os mais vulneráveis. Porém os fortes continuam gananciosos, não abrem mão dos tesouros, aferram-se ao poder e ao mando.
E um diabo tresloucado, que sentou-se no trono com o apoio de milícias, milicos e dementes infernais, empurra os mais fracos às profundezas do inferno, sem bilhete de retorno.
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