03 maio A Ciência é a religião do nosso tempo?
Diário do isolamento 15
(domingo, 03 de maio)
Passei dias sem ânimo de escrever uma página. O diário já existia antes que eu o chamasse assim, na forma de crônica ou pequenos ensaios. O tema da pandemia e do desgoverno brasileiro tornou-se repetitivo, monótono, um lugar comum do jornalismo e das conversas diárias. Até nas entrevistas me perguntam como o escritor se sente no exílio involuntário. Quais os novos projetos de livros, quando há mais horas para a escrita e o ócio.
Ao contrário de muitos artistas, o tempo livre dessa quarentena não me motiva a escrever. Ele chega artificial pela porta e pelas janelas do apartamento onde moro, num décimo primeiro andar. Preciso de silêncio e recolhimento voluntários, sem medo nem ameaça. O escritor busca comunicar-se com os leitores do seu tempo. Não sei que tempo é esse que vivemos e ignoro como serão os leitores da era pós coronavírus. Agora, nem penso em escrever romances, novelas, contos ou peças de teatro.
Afirmam que o isolamento é para o meu bem. Cumpro as regras, respeito a opinião da maioria, acato as ordens. Tornei-me obediente a todos os cuidados sanitários, sou quase ortodoxo nisso. Na defesa da saúde e da vida qualquer limite pode ser imposto à liberdade individual, declaram. Mas desconfiado pergunto: a prisão forçada será um novo tipo de totalitarismo?
Formular perguntas como essa tornou-se suspeito, ela parece alinhar-se ao pensamento do desgoverno que vivenciamos. Longe de mim. Não alinho um traço com o Messias brasileiro. Descubro em Giorgio Agamben inquietações semelhantes às minhas, venho registrando-as, faço perguntas, grito como um Jó inconsolado.
Ainda hoje minha queixa é uma revolta; minha mão comprime meu gemido. Oxalá soubesse como encontrá-Lo, como chegar à sua morada. Exporia diante Dele a minha causa, com minha boca cheia de argumentos.
Mas desde o século VI antes de Cristo, o filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso já definia o logos como um conjunto harmônico de leis que comandam o universo, formando uma inteligência cósmica onipresente, que se plenifica no pensamento humano. Ou como a razão que domina todo o universo e que faz possível a existência de ordem e regularidade no acontecimento das coisas. Inaugurava-se a Ciência, o fim da explicação dos fenômenos da natureza pela mitologia. No século I depois de Cristo, no neoplatonismo e no gnosticismo, definiu-se o logos como inteligência ativa, transformadora e ordenadora de Deus em sua ação sobre a realidade.
Um Deus ordenado? Mas isto já é Ciência. Em nosso tempo a Ciência se tornou a nova religião, mesmo que ela não tenha resposta para muitas de nossas perguntas, como agora.
Deus também não tinha resposta para os que apelavam a Ele.
E, todavia, não me dou por vencido por essas trevas; Ele, porém, cobriu-me o rosto com a escuridão.
No Comments