03 jun Ninguém escapa aos invejosos
Suponho que o curta-metragem foi dirigido por Luchino Visconti, mas não posso garantir. Eu o assisti no antigo cinema Coliseu, em Casa Amarela, quando em Recife havia salas de exibição no centro da cidade e nos bairros. Era uma produção italiana em que reuniram cinco diretores. O curta que me impressionou narrava a história de uma atriz famosa pela beleza – ou seria uma cantora lírica? –, celebrada por seus fãs numa festa de luxo. Depois de taças de champanhe, ela sente-se mal e desmaia. Os convivas se aproximam do corpo adormecido e começam a despi-lo de tudo o que realça a beleza. Removem joias, roupas e maquiagem. Nunca esqueci os rostos das pessoas, ocupados em destruir o mito que elas mesmas haviam criado.
O assassinato de Abel pelo irmão Caim, no Gênesis, é o primeiro registro sobre a inveja, da mitologia judaico-cristã. Isso se considerarmos que as motivações de Adão e Eva ao comerem o fruto da árvore plantada no meio do Éden eram apenas a desobediência e a gula. Mas o desejo do primeiro homem e da primeira mulher poderia ser o de que os seus olhos se abrissem e eles se tornassem como os deuses, versados no bem e no mal. Uma pulsão invejosa.
Abel era pastor de ovelhas e Caim cultivava o solo. Caim ofereceu os frutos da sua colheita a Yahweh e Abel as primícias e a gordura de um carneiro do seu rebanho. O Deus se agradou de Abel e sua oferenda, mas não se agradou de Caim e do que ele trouxe ao altar. Caim ficou irritado, com o rosto abatido, o que foi percebido pelo Onisciente, Aquele a quem nada escapa, nem mesmo um fio de cabelo da nossa cabeça.
O Deus não ignora os danos da sua arbitrária preferência. Mesmo assim interroga Caim: “Por que estás com raiva e por que teu rosto se abateu? Se estivesses bem disposto não levantarias a cabeça? Mas se não estás bem disposto, não jaz o pecado à porta, como animal acuado que te espreita; podes acaso dominá-lo?” A interpelação de Yahweh aumenta o rancor de Caim, levando-o ao descontrole. Possesso, ele busca anular o que não compreende, nem aceita.
– O que fiz? Em que errei? Por acaso as espigas não são necessárias à sobrevivência do homem, igualmente ao leite e à carne das ovelhas? Porém este Senhor parcial só tem olhos para as oferendas do meu irmão, só enxerga a prosperidade do seu trabalho. Mesmo que eu reinventasse o mundo, salvasse a humanidade do abismo, mesmo assim não seria olhado, nem teria a minha criação reconhecida. Julgo-me superior a Abel. Sou moderno e graças ao cultivo do solo crescem as cidades, o homem se fixa na terra e prospera.
Este poderia ser o discurso. Ou este:
– Quem é Abel? Um pastorzinho insignificante. Olha cabras e ovelhas pastarem, arranca o som modorrento de uma flauta, não tem ambições, mal distingue a noite do dia. Mas com os artifícios da sua música, composta apenas de habilidades, ele engana o Todo Poderoso e alguns tolos juízes que o premiam, como se vissem merecimento onde nada existe. Abel reproduz estrídulos, coisa feita, artefatos.
Exaltado pelo amor próprio, Caim mata o irmão. Matar é o derradeiro recurso do invejoso para suportar-se e continuar vivendo.
Shakespeare aprofundou o estudo dos pecados capitais, no teatro. Macbeth, personagem exemplo de cobiça ao poder, trai, enreda e mata para alcançá-lo. Investigando a personalidade do general escocês, descobrimos que a inveja o impulsiona a cometer atrocidades. A esposa alimenta a fogueira. Incensa qualidades inexistentes. Ataca o destino e as forças que regem o universo porque não se ajoelham diante da grandeza do esposo. Eleva sua vaidade às alturas do que julga merecimento.
Através do sobrenatural, se dá o encontro de Macbeth com três feiticeiras esquálidas e estranhas na maneira de vestir. As parcas semeiam a cobiça ao trono da Escócia, no coração de Macbeth, que valoriza profecias e sinais fora da lógica. Bem diferente do pérfido Edmundo, do Rei Lear, o invejoso mais elaborado da história da literatura. Edmundo recusa que a astrologia e o sobrenatural expliquem seu nascimento bastardo, sem os direitos do irmão Edgar, filho legítimo do nobre Glócester, a quem ele se julga superior em tudo.
Ninguém escapa aos invejosos, nem à sua sanha destrutiva. Na fábula do vaga-lume que vai ser devorado pela serpente, o inseto solicita fazer três perguntas ao réptil. Faço parte da sua cadeia alimentar? A resposta é não. Já lhe fiz algum mal? Outro não. Então, porque vai me devorar? Porque não suporto o seu brilho, responde a serpente.
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