Histórias de fadas | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Histórias de fadas

Ganhou o nome Maria Velha quando contrataram empregada nova para a família, uma moça parecendo índia, também com o nome Maria. As crianças continuaram a chamá-la de Baía, a pedir que guardasse pedacinhos do coco que ralava para o bolo, ou que descascasse macaúbas. Sofria enxaqueca, queixava-se que tinha amanhecido com a cabeça grossa. A casa por varrer, as roupas no tanque e ela encolhida nas tábuas de uma mala, que a Dona trouxera no casamento. O forro da mala de cedro guardava o cheiro de uma loção francesa. O vidro se quebrara nas várias mudanças da família. O perfume continuou incensando o jacá vermelho da forração. Seria a causa da cefaleia, Maria Velha garantia.

Não ficava anos seguidos na mesma casa, embora mantivesse o vínculo através de visitas frequentes e pedidos de ajuda, compensados com trabalho. Sentia-se mais livre assim. Ninguém falava em direitos para as domésticas, férias, décimo terceiro salário, jornada fixa, descanso nos finais de semana, fundo de garantia. Os patrões pagavam o que bem quisessem, quando pagavam. Alguns retribuíam apenas com refeições e roupas. Só isso. Na falta de coisa melhor, elas iam ficando, não casavam, nunca visitavam os parentes, numa renúncia à própria vida. Agregadas fiéis, davam o sangue pela família adotada como se fosse a sua.

As que tinham mais sorte geriam negócios dos patrões em fábricas de queijo ou redes, vendiam bolos e doces caseiros, tocavam pequenos comércios. Prosperavam após a morte dos senhores, abriam cafés, onde os fregueses degustavam as receitas da família tradicional. Se os herdeiros moravam noutras cidades, concediam os ganhos às velhas agregadas. Esquecidas dos parentes de sangue, terminavam sozinhas. Sentiam vergonha da pobreza e da vida rústica dos pais.

O sistema patriarcal, baseado em séculos de escravatura, inventou relações complexas entre as pessoas de cores e classes sociais diferentes. Uma maneira de valorizar as semi escravas era conceder que nos batismos fossem madrinhas de apresentar das crianças cuidadas por elas. Uma honra, a ilusão de pertencimento à família.

 

 

Baía veio trabalhar na casa pela primeira vez, quando o quinto filho do casal precisava ser tirado do peito. De noite, ela embalava a menina de dois anos, que chorava pelo leite materno. Nesse tempo, já sofria dores pela artrite, usava saia de algodão até os tornozelos e blusas de mangas compridas com bolsos. Fumava cachimbo, no canto mais longe e escondido do quintal. Era negra, nasceu livre, mas os avós com certeza foram escravos.

Em 1932, fugindo da grande seca, Baía foi aprisionada com o marido e cinco filhos em um dos Campos de Concentração do Ceará, chamados pelos imigrantes de Currais do Governo. Eram cercados de arame farpado, onde o poder público, a sociedade e os comerciantes confinavam os retirantes, impedindo que chegassem às ruas das cidades, chocando as pessoas com o espetáculo da fome, miséria e feiura. Em Crato, Ipu, Senador Pompeu, Quixeramobim e Fortaleza não mediram esforços para manter as dezenas de milhares de famintos segregados dos ricos, pessoas temerosas de contágio, compungidas no catolicismo, mas indiferentes à desgraça dos flagelados. No conceito, os campos cearenses pouco diferiam da Alemanha nazista e da Rússia stalinista.

Fortaleza, a capital, passara por um embelezamento no estilo Art Decor e assumira o epíteto de “loura desposada do sol”. Os donos de fábricas e indústrias visitavam os dois Campos construídos em torno da cidade, escolhiam homens e mulheres mais nutridos e de melhor aparência, aptos ao trabalho. Eram levados com a promessa de serem pagos com refeições.

O esposo e os cinco filhos de Baía morreram num dos Currais de Fortaleza. Apenas ela sobreviveu. Honesta, de se confiar a chave e as joias da casa onde trabalhasse, tinha um estranho costume. Escondia parte de suas refeições nos lugares mais impensáveis, sem jamais comê-las, até que apodreciam. Talvez lembrasse o marido e os filhos famintos.

A dona da casa onde Baía trabalhou havia sido criada por uma babá, que perdera suas filhas para a fome, na seca de 1917. De três meninas, apenas uma escapou. À noite, quando elas choravam famintas, a mãe colocava pedrinhas de sal na boca de cada uma, na esperança de que se consolassem.

 

 

Baía quis morar num abrigo, logo que se aposentou. O dinheiro da aposentadoria pagava a hospedagem. Sentia-se feliz e protegida. Assistia missa todos os dias e já não precisava trabalhar por obrigação, embora continuasse trabalhando por hábito.

A outra Maria, a que parecia uma índia, engravidou do patrão. O velho costume da casa grande. Numa viagem da esposa, o marido levou a Maria Nova à cama de casal. Nem os lençóis foram trocados. Não tinha importância, era a índia quem lavava. O segundo filho, um menino, viu a cena primária pelos postigos da porta.

Às pressas, arranjaram um casamento com o morador das terras de um vizinho, rapaz também parecido com índio, meio abestalhado. Quando a filha de Maria nasceu, foi dada a criar por uma irmã do patrão. Felizmente, a sorte foi mais favorável a ela, que terminou bem casada e com ótimos filhos. Feliz para sempre como nos contos de fadas.

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