05 jul Você não aguenta mais a quarentena? Faça uma live.
Diário do isolamento 22
(domingo, 05 de julho)
Você não aguenta mais a quarentena? Faça uma live.
O velho enrugado parecia inquieto. Quando eu facultasse a palavra, certamente falaria. Todos queriam voz, a orientação era deixar que falassem. Conversávamos sobre a esquistossomose, formas de contrair a doença. Os participantes se dispunham num círculo, sentados em cadeiras trazidas de casa. Naquela noite, um morador do bairro quase rural de Vitória de Santo Antão, Pernambuco, cedera a coberta de palha ao lado de sua casa.
De pé, falando alto, expresso-me com palavras simples para que me compreendam. Todos mostram-se atentos, mas não sabem direito o que desejam os médicos, as enfermeiras e assistentes sociais, que visitam a comunidade nas segundas-feiras à noite. Apesar dos treinamentos e capacitações, estou longe de sentir-me seguro.
Entrei para o Projeto Vitória, quando nem havia terminado a residência em clínica médica. Interessava-se atuar em saúde pública e medicina comunitária. O projeto era piloto, um dos primeiros no Brasil. Escolhido o município de Vitória, pela proximidade do Recife, começaram as ações, que de início consistiam em visitas às comunidades para sondagem e informações primárias de saúde.
Naquela noite, já falei, informava os moradores sobre como se dava a infestação pelo Schistosoma, os ciclos de vida do verme, os dois hospedeiros – o caramujo e o homem –, a penetração das cercarias pela epiderme, sobretudo nos cursos d’água contaminados. A esquistossomose era uma calamidade, não havia tratamento eficaz da doença, os pacientes crônicos permaneciam meses internados nos hospitais, o Brasil não tem saneamento básico, as águas são contaminadas, as comunidades ribeirinhas tornam-se as mais vulneráveis. Concluía a palestra com um apelo dramático:
– Por isso, evitem os banhos de rio, sobretudo nas horas mais quentes, não lavem roupas nem apanhem água para consumo em rios.
O velho mastigava com as gengivas, as rugas do rosto moviam-se como sombras percorrendo a terra.
– O Senhor me dá a palavra, doutor?
– Dou sim, seu José, pode falar à vontade.
– Desculpe, mas o senhor acaba de me fazer um grande mal. Antes, todo dia eu tomava meu banho de rio tranquilo, enchia os potes de casa e estava satisfeito. Agora, sei que se tomar banho vou adoecer e morrer. Em que me ajuda saber o que o senhor falou? Em nada. Não tenho outra água, só essa mesma. Vou continuar usando ela. O senhor vai me dar água boa, potável?
Propus que se unissem, lutassem pelos direitos, cobrassem dos políticos água tratada, boa para consumo. Seguiu-se um longo silêncio. Eu também emudeci envergonhado.
A mesma vergonha que sinto quando peço ao entregador de feira para ficar em casa e guardar quarentena, no espaço de vinte metros quadrados que divide com a mulher e dois filhos. A vergonha paralisante que sentem os médicos de família e comunidade ao visitarem os moradores do Canal do Arruda, confinados em barracos de tábuas, papelões e amianto, que se sentem vivos apenas quando ganham a rua entulhada de lixo, mas onde faz menos calor, se respira melhor e é possível olhar o céu.
Artistas famosos e pessoas ricas relatam a jornais e revistas como tem sido angustiante se confinarem em praias, sítios, fazendas, em casas grandes com jardins. Sentem falta dos holofotes mirados neles, temem perder a visibilidade a que estão acostumados. Fazem lives, campanhas para as pessoas obedecerem à quarentena, posts com “fique em casa” e se fotografam com máscaras exóticas.
Também confortavelmente resguardado, escrevo um diário do isolamento, olhando as filas em frente à Caixa Econômica, onde se paga uma ajuda de 600 reais.
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