22 ago I – Sobre igrejas e Igrejas
Diário do Isolamento 28
(sábado, 22 de agosto)
I – Sobre igrejas e Igrejas
Num passeio de domingo em Paris, fomos guiados por Anne Lima, editora francesa da Chandeigne, que publicou meu livro de contos Faca – Le jour oú Otacilio Mendes vit le soleil. Isso não faz muito tempo, o Brasil despontava com a melhor política de incentivo à tradução e edição dos seus escritores. Mas parece que se passaram séculos, tamanho o abismo entre esse período iluminado e o obscurantismo em que mergulhamos.
Avistamos a igreja de Saint-Étienne. Propus à guia que entrássemos para conhecer a construção nos estilos gótico e renascentista, onde foram sepultados Racine e Pascal. Anne falou que podíamos fazer a visita, ela esperaria do lado de fora, pois não entrava em igrejas. Estranhei a atitude de uma filha de pai português, mas acatei-a com respeito. O número de luso-francês ou português-francês é bem elevado e a maioria se diz católico. A França é um estado laico, o catolicismo anda em baixa. As igrejas funcionam como monumentos turísticos. Os portugueses ainda as frequentam por motivos de fé. Mas Anne Lima representa um novo pensamento e nova atitude acerca da religião.
Em Leipzig, convidei os amigos escritores Luis Krausz e João Almino para assistirmos um concerto barroco na Igreja de São Tomás, onde Bach foi professor e diretor musical. Krausz, um descendente de judeus alemães, recusou-se, alegando que nunca havia entrado em uma igreja. João Almino não apreciava o que elas representavam. Habituados a séculos de massacre, é natural que um judeu se recuse a entrar em templos cristãos. A conivência do Vaticano com o genocídio do seu povo e o envolvimento de cardeais na fuga de alemães criminosos de guerra tornou o convívio impossível. Prevaleceu o amor à arte. Assistimos ao concerto e nos maravilhamos com a música.
Eu tinha dezesseis anos quando decidi romper com o catolicismo. Foi um ato de rebeldia e recusa ao clero hipócrita. Educado numa família católica, minha fé em Deus e nos santos não resistia a um sopro. Mamãe, uma cristã verdadeira, praticava os Evangelhos. Minha avó seguia o catolicismo popular, supersticioso, cheio de crendices. Meu pai ateu foi ameaçado de excomunhão, por haver batido em um padre. Uma semana antes de morrer, revelou-me sua completa descrença na alma e no outro mundo.
Contribuindo para o meu ecletismo religioso, eu convivia com romeiros do Padre Cícero, beatos de seitas milenaristas, ouvia histórias sobre o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto e assistia espetáculos populares de reisados e lapinhas, onde o sagrado e o profano se misturam numa desordem apócrifa. Da Igreja Católica, eu só gostava mesmo das festas, procissões, coroações, cantos, representações, tudo o que a vinculava ao paganismo.
Como se deu a minha ruptura com esse mundo?
(continua amanhã)
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