10 ago Pais no céu, Pais no inferno
Diário do isolamento 26
(segunda-feira, 10 de agosto)
Tivemos um dia dos pais festejado. Pairava a emoção de Natal. Talvez pela
reaproximação de famílias separadas há cinco meses, por conta da
pandemia. Mesmo com o estarrecedor número de 100.000 mortos,
decidimos celebrar a vida. Mesmo órfãos pela partida do Cacique Aritana,
grande pai das nações indígenas do Xingu, e de Dom Pedro Casaldáliga,
bispo católico defensor dos mais frágeis e oprimidos.
Na sexta-feira, três milhões e oitocentos mil brasileiros acompanharam a
live de Caetano Veloso e seus filhos Moreno, Tom e Zeca, carinhosamente
chamados pelos nomes próprios, e não pelos números 1, 2 e 3. Caetano
celebrou 78 anos de vida plena de criação, brasilidade, sucesso, e confessou
estar feliz com o recolhimento na família. Muitos filhos não tiveram a
mesma felicidade.
Abuso propositalmente dos números. Há neles um viés perverso. O
sadismo se caracteriza pela repetição numérica, fazendo as pessoas
perderem identidade e história. Dizer que já morreram 100.000 pessoas
vítimas da Covid-19, soa frio como afirmar que uma fábrica deixou de
produzir 100.000 peças de carro. Os dramas e sofrimentos de cada perda se
eclipsam, reduzidos a números.
Em Canudos, no ano de 1897, foram exterminados 25.000 sertanejos
nordestinos e morreram 5.000 soldados de várias regiões do Brasil. Na
época, nossa população era inferior a 17 milhões. Se calcularmos em bases
percentuais, considerando a população atual de 210 milhões, em Canudos
foram mortos 308.700 conselheiristas. Nossa história nada mais é do que
uma sucessão de extermínios.
Hanna Arendt se referia a Stalin como o grande pai assassino. No domingo
9 de agosto, dia dos pais, os brasileiros deveriam ter exigido do padrasto a
responsabilidade por nossas perdas na educação, saúde, cultura, ciência,
tecnologia, liberdade. Mas não há quem se assuma responsável por isso,
quem confesse pesar, ou mesmo compaixão pelo que sofremos.
E quase todos falam em nome de Deus.
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