Quando soprar bom vento | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Quando soprar bom vento

Diário do isolamento 27
(sexta-feira, 21 de agosto)

Precisei ir à minha dentista e senti o quanto se tornou complicado viver. Uma restauração feita com amálgama, lá pelos meus 17 anos, fraturou. A primeira parede caiu com o fio dental, a segunda quando eu mastigava uma torrada e a terceira, já nem me lembro. Parecia uma casa velha ruindo. Restou apenas a parede frontal.

O isolamento havia começado e resolvi não sair de casa. Depois de três meses, procurei a dentista. Ela recebeu-me com bata descartável, máscara, viseira de proteção facial, toca e propé. Antes de entrar no consultório, precisei limpar os sapatos num tapete com água sanitária e enxugá-los noutro tapete. Uma fita marcadora indicava que eu precisava sentar-me numa poltrona e calçar propé. Todos os meus pertences foram lacrados em embalagens plásticas e guardados num saco de vinte litros.

Sentei-me na cadeira e, só então, retirei minha máscara e guardei-a num saquinho a vácuo. Pus óculos plásticos e fui envolto num lençol descartável. Minha competente dentista perguntou se eu tinha claustrofobia. Falei que não. O meu corpo foi coberto com uma espécie de tenda, dotada de faixa de plástico transparente, pela qual era possível ver minha boca e os dentes. As mãos enluvadas da astronauta entravam por um lado da barraca árabe e eu percebia o quanto os artefatos dificultavam seus movimentos. 

Feito o diagnóstico, foi sugerida uma prótese – a coroa –, o que significava um longo período de idas e vindas ao consultório e outros rituais semelhantes a este que descrevo. Lembrei meu dentista de infância e adolescência, doutor José Nilo, autor do reparo de mais de 50 anos. Era um mestre artesão, quando a odontologia ainda engatinhava. Apesar da distância no tempo, ele já usava máscara e luvas. E como trabalhava bem com os limitados recursos de uma cidade pequena.

Por volta da terceira consulta, minha dentista suspendeu o tratamento. Sua mãe fora internada com suspeita de Covid-19 e ela precisava acompanhá-la no hospital, tornando-se um vetor de contaminação. Aguardei paciente. Após a alta da mãe, que felizmente tinha apenas uma infecção urinária, a dentista precisou guardar quarenta de 15 dias, por medida de segurança para seus clientes. Atitude correta e ética.

Nessa pandemia, damos um passo à frente e dois para trás. Com a abertura, retornei ao pilates, no começo de agosto. Que maravilha é cuidar do corpo cheio de tensões e perda de massa muscular. Um sopro de alegria. Mas, durou bem pouco o Aracati. O esposo da professora tornou-se suspeito de Covid-19. Ela e a filha, em consequência, também são suspeitas. Fazíamos os exercícios com os cuidados preconizados. Em salas amplas e abertas, guardando distância de mais de cinco metros entre os alunos, apenas dois por aula, usando máscara, touca e propé. Um bando de extraterrestres.

Se os testes positivarem, a professora guardará quarentena por não sei quanto tempo. Se não desenvolver a doença. Alegria de pobre dura pouco, afirma o ditado. Há pobres bem mais pobres que nem sabem o que é alegria. Para estes, vento nenhum sopra. 

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