Sobre quase nada | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Sobre quase nada

Diário do isolamento 30
(domingo, 30 de agosto)

Depois de muitos artigos publicados nessa página, me pergunto se ainda existe assunto para um novo texto. Os leitores esperam que sejamos originais, escrevendo crônicas bem humoradas ou contundentes, que mexam com as suas entranhas. Às vezes, um texto rápido, redigido às pressas, sem nenhuma pretensão, faz o maior sucesso. Outras vezes, trabalhamos horas a fio sobre conceitos difíceis, desenvolvendo raciocínios complicados, verdadeiras teses, e o resultado é pífio, ninguém comenta. Parece até que silenciam de propósito, por sadismo.

É difícil ser original. Mais difícil ainda manter um padrão de qualidade sem cair nas repetições. A escrita, como a representação teatral, possibilita os truques, os jeitinhos, os cacoetes. Mas eles se esgotam iguais às caretas de um palhaço ruim. E o falsário cai na síndrome do Bartleby, de Melville, no esgotamento. Repete o eterno “acho melhor não”.

Só existem sete temas básicos na literatura. O resto são desdobramentos e variações em torno da mesma e repetida história. Pergunto quantos temas há no jornalismo, essa fábrica de notícias de última hora, sujeitas ao esquecimento. Nele, também é preciso imaginação e uma das seis virtudes propostas por Ítalo Calvino para o próximo milênio: rapidez.

Sim, é necessário correr contra o tempo, ou melhor, antecipar-se a ele. E às vezes, arriscar profecias. O relógio dos jornais diários não é o mesmo das revistas de circulação mensal. Nestas, trabalhamos com um tempo depurado. O diário é um vinho verde, a coluna mensal um bordeaux de safra antiga, guardado em tonel de madeira. Não entra na comparação nenhum critério de valor, apenas de ponteiros.

Nariz de cera é o nome dessa enrolação que precede o corpo do artigo, espécie de entrada servida antes do prato principal. Mas que prato eu irei servir a vocês leitores? Juro que não sei. Será que sofro do mal de Montano, um lapso de criatividade? Quem sabe, ao longo de quase sete anos levei vocês na conversa mole, tapeei-os como os autores de truques, e já não existem coelhos na minha cartola? Há algum tempo, penso seriamente em mudar para o ramo da autoajuda.  Mas, se penso seriamente, não penso sobre autoajuda. Puxa, já estou sofismando!

Meus leitores, bom dia! As palavras se unem em frases para elevar os corações à plenitude do ser. (O que acham? É um bom começo?) Principiemos com uma pequena fábula zen budista. (O zen pega bem). Um discípulo desejava aprender o que é o zen e procurou um mestre que morava ao pé de um lago, numa pequena casa cercada de bambus (Bambu é perfeito, porque lembra a música de flauta).

– Mestre, ensina-me o zen – pediu o rapaz.

O mestre, sentado sobre uma esteira de palha, olhou ironicamente o discípulo (Geralmente esses mestres são irritados, mas não fica bem eu escrever – olhou irado –, melhor imaginá-lo levemente irônico).

– Já tomaste a tua sopa hoje? – perguntou.

– Já – respondeu o rapaz com humildade.

Imagino o discípulo humilde, uma das virtudes do tao. Desculpem, a fábula é zen budista, e não taoísta. Sempre nos atrapalhamos no começo de uma nova carreira. Desculpem novamente, a humildade não é virtude no tao, e sim a modéstia. Mas, deixemos como está.

– Então, volta e lava a tigela! – ordenou o mestre.

É só isso, não esperem mais texto. Vamos à interpretação. Essa fábula ensina a não buscar sentido para a vida apenas nas grandes realizações. Em coisas simples como lavar uma tigela, pode esconder-se o real significado da existência. Concentrem-se nos pequenos afazeres e encontrarão a alegria e a tranquilidade. Não se iludam com a maia do fazer por fazer (Outra escorregada, maia é do hinduísmo).

Façam fazendo. Estejam no que fazem e só assim atingirão a plenitude do ato. Olhem os lírios do campo, eles não semeiam nem colhem (Caramba, essa é do Sermão da Montanha! Tenho de remendar), mas são belos porque repetem a milenar ciência de ser flor, sem nenhuma outra pretensão além disso. Lavem a tigela. Se possível, arranjem emprego num restaurante japonês e lavem muitas tigelas, vão lavando, lavando, que um dia vocês serão todos zen.

Acho um começo razoável. Prossigamos com uma fábula taoísta, para impressionar os leitores e mostrar erudição. Um homem morava com o filho único numa casinha ao pé da montanha. Uma noite, fugiu do seu curral o cavalo que puxava o arado. Os vizinhos lamentaram o infortúnio, mas o homem, praticante do taoísmo, não percebia distinção entre lucros e perdas.

Dias depois, o cavalo retornou acompanhado de nove potros e éguas selvagens. Os vizinhos ao saberem da fortuna correram à casa do felizardo. O homem dispensou-os com a serenidade de sempre, falando sobre a riqueza do ser e a pobreza do ter. No dia seguinte, quando amansava os cavalos, o filho caiu e quebrou uma perna. Os vizinhos correram aos prantos, lastimando o pai infeliz. Mas ele sabia que os infortúnios não tardam a passar.

No meio de fanfarras, chegaram os emissários do rei, convocando os rapazes da vila para a guerra. Somente o rapaz não foi levado, porque se encontrava enfermo. Os vizinhos aclamaram o pai pela sorte. Porém ele enxotou-os lembrando que a vida verdadeira é como a água, que em silêncio se adapta às alturas e planuras, não se opondo a nada.

E assim por diante, até se completarem os quatro mil e quinhentos toques desse artigo, que trata sobre quase nada, como tudo na vida.

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