14 set Diário do isolamento 33 – Respondendo entrevista em meio à pandemia
Diário do isolamento 33
(segunda-feira, 14 de setembro)
Em sua obra, as personagens femininas são marcantes, mas quase sempre silenciadas, tendo sua existência mediada pelo olhar masculino. Talvez o exemplo mais significativo seja a personagem Donana, que não apenas reaparece como presença fantasmagórica em vários textos, como também é assassinada pelo marido. Em que medida essas escolhas estéticas dialogam com certas estruturas sociais brasileiras? Como Dora sem véu (Alfaguara, 2018) se insere nesse panorama?
Resposta.
Preciso falar um pouco de minha família patriarcal, embora insista que não escrevo História, auto-ficção ou biografia. Meus antepassados saíram de Pernambuco por vários motivos, um deles por terem se envolvido num levante. Eram três irmãos: o padre José Bezerra do Vale, que depois iria viver com uma índia, com quem teve uma prole numerosa, sem nunca abandonar o sacerdócio; Ana Maria Bezerra do Vale, minha oitava avó, casada com um cristão novo, Bernardo Duarte Pinheiro; e João Bezerra do Vale, que se casou com Ana Gonçalves Vieira, filha do mais importante mandatário do sertão cearense, o Coronel Francisco Alves Feitosa, e irmã de dois homens poderosos.
Esse ramo da família chegou ao sertão dos Inhamuns no começo do século dezoito. Em uma telha da Casa do Umbuzeiro, do padre José Bezerra do Vale, foi registrado o ano de 1721. As terras férteis às margens do rio Jaguaribe formavam um mundo especial, meio bíblico, mouro e grego. Havia pastores, vaqueiros encourados, vivendo pelo campo repleto de rebanhos. E índios insubmissos que foram massacrados, restando apenas as mulheres, tomadas como esposas pelos posseiros, por orientação da Igreja e da Coroa. Os donos das grandes sesmarias eram violentos e soberbos. A guerra entre as famílias Feitosa – de Ana Gonçalves – e Monte durou quase cem anos. O Reino precisou intervir diversas vezes, e levar os valentões assassinos para presídios em Portugal.
Meu tio em oitavo grau, João Bezerra do Vale, transportava carregamentos de carne para o Recife. Na cidade, apaixona-se por uma jovem de família ilustre, passando-se por solteiro. Acerta casamento, volta aos Inhamuns e assassina a esposa, apunhalando-a pelas costas. A morte abala a família. Lembra uma tragédia grega pela riqueza de detalhes, que não cabe narrar. Trata-se de um feminicídio inaugural, uma culpa para todos os homens carregarem e as mulheres buscarem vingar.
Dos oito filhos do meu pai e da minha mãe, eu fui o mais traumatizado por essa história, narrada em família um número incontável de vezes. Quando a escutei pela primeira vez, tinham se passado dois séculos e meio. Fiquei numa perigosa zona de vizinhança, já não conseguia me distinguir dessa mulher e de outras parecidas com ela. Penso que está explicado por que elas reaparecem a cada livro, em Faca, Livro dos Homens, Galileia, Estive lá fora, O amor das sombras e em Dora sem véu.
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