28 nov No gume da prosa
Por Natasha Belfort Palmeira
Numa crônica de 1894 intitulada O punhal de Martinha, Machado de Assis comparou o destino de dois punhais: o de Lucrécia, imortalizado por Tito Lívio, e o de uma certa Martinha, moça de Cachoeira, na Bahia, que virou notícia numa gazeta local por ter “furado” o homem que ameaçou desonrá-la. A primeira arma, escreve o cronista, entra para a história universal, mas a segunda é “consumida pela ferrugem da obscuridade”, afinal Roma não é Cachoeira. A “parcialidade dos tempos” fará com que o punhal da Martinha caia no esquecimento, apesar da coragem da cachoeirense e da beleza da sua linguagem, com valor natal e popular inestimável. É uma pena, mas “tais assim são as cousas deste mundo, tal é a desigualdade dos destinos”, arremata.
Resolvi cortar caminho pela crônica de Machado por acreditar que o problema por trás dos dois punhais, isto é, o da relativização da universalidade do universal, ou da particularidade do particular, é caro também ao nosso convidado de hoje. Pois a singularidade estilística e o alcance literário da prosa límpida do Ronaldo ganham menos com o predicado “regionalista” que teríamos tendência a atribuir à sua literatura. Tal classificação, me parece, perde cada vez mais sentido, ao menos em sua acepção implicitamente redutiva, isto é, a de literatura que se limita a tratar de um povo e uma cultura particulares e sem suposto interesse para o resto do planeta. Essa categoria literária não seria fruto de “outra parcialidade dos tempos”, ou da persistência da mesma parcialidade a que já se referia Machado? Se assim não fosse, só poderíamos nos convencer do valor estético do reisado nordestino, por exemplo, ao compará-lo à Ópera de Pequim ou ao kabuki, deixando a diferença da pobreza econômica de lado, como faz Antônio Paulo no conto Cravinho.
O microcosmo ficcional de Faca e Livro dos homens, ou ainda dos romances Galileia e Dora sem véu tem raízes no pedaço de terra onde Ronaldo cresceu e aprendeu a decifrar o mundo. E nesse sentido, sim, sua prosa é regionalista, tão regionalista quanto pode ser um romance de Machado sobre o Rio de Janeiro no século XIX.
Mas as comparações servem apenas num primeiro momento, para adiante olhar a fundo a composição literária. Nesse plano, importa apenas indiretamente o local geográfico – Roma, Cachoeira, o sertão dos Inhamuns. Importa como o escritor molda os materiais de que dispõe imediatamente, aproveitando as possibilidades formais que estes lhe oferecem; interessa como descobre neles dramas que estão em toda parte. Importa menos a proveniência do punhal que matou Donana, do que o assombro suscitado pelo crime, ou do que a faca, cúmplice de atos trágicos sempiternos, que ferem e envolvem todos nós.
Título de sua coletânea de estreia no Sudeste, faca é arma branca concreta e simbólica que atravessa os contos do autor, assim como as narrativas de maior fôlego que virão depois. Além de motivo literário, ela parece ser também princípio formal que entalha o grosso da experiência, fazendo muito caber em tão pouco. Assim, “a terra toda” pode caber “nas rugas do rosto de uma mulher”, como está escrito no conto “Deus agiota”, e a ruína de uma família ilustre, no detalhe sutil de um penteado, como nessa passagem de “Redemunho” que descreve a matriarca: “Catarina Cavalcante de Albuquerque Bezerra prende os cabelos em dois cocós altos, com marrafas de casco de tartaruga, desprovidas de alguns dentes”. Daí a força dessa prosa bem talhada e enxuta dos contos e romances de Ronaldo; daí sua distensão, pois é por esse gesto certeiro do prosador, que remove o azinhavre dos metais e a ferrugem das lâminas, que a narrativa se desprende da moldura sertaneja para se tornar palco de conflitos e contradições mais amplos.
Esse mesmo princípio formal rege também o trato com o tempo narrativo, que é rigorosamente cortado, feito de hiatos e de esperas, de tempos que não passam e fazem irromper a assombração de um passado que ameaça se repetir fatalmente a todo instante. É exemplar, nesse sentido, o ponto culminante do romance Galileia em que Adonias repete, ou pensa repetir, os crimes da família, percorrendo numa passagem notável os mesmos lugares e gestos de Domísio – fantasma cuja história é recontada em outros livros seus. A herança rural é então ao mesmo tempo memória de morte, de relações brutas, e fonte de ricas narrativas da tradição oral.
A tensão narrativa da espera criada pela estrutura trágica e concentrada das histórias, e que deixa o leitor em constante suspensão, assume um nível simbólico mais geral, que dá conta também do processo inverso, isto é, em que o todo chega ao miúdo. A temporalidade cíclica ligada à tópica da espera, e emprestada da épica oral, como notou Davi Arrigucci no posfácio ao livro Faca, admite tanto a mistura das histórias antigas com as mais recentes, quanto o encontro entre o arcaico e o moderno, reconhecível seja no pormenor, como é sólito na escrita do autor, em que o som de um telefone pode ser confundido com um chocalhinho de cabra, seja no plano mais geral do embate entre o conhecimento científico e os saberes seculares da tradição popular, como ocorre no romance Dora sem véu. Esse tempo ficcional permite também imitar a combinação precária entre o mundo agreste e a modernidade. O sertão, como escreveu Ronaldo em uma entrevista, torna-se a paisagem através da qual interpreta “o mundo, o de hoje, o globalizado, o que rompeu com as tradições”.
Como num poema de Drummond, a presença do mundo moderno se faz sentir através do ingresso paulatino de mercadorias importadas de longe ou “de baixo”, que vão de artigos de luxo – pianos trazidos da Europa, rádios e celulares sem rede que a garotada vê na televisão e acha bonito – ao lixo:
“Enxergo o mundo em volta de mim, afogado em sacos de plásticos, que o vento carrega de um lado para outro. Uma velha caminha com uma lata d’água na cabeça. Até aquele momento, nunca soube de sua existência, e ela igualmente nunca soube de mim. O que pensa? Quantas vezes ela encheu as jarras da casa, desde menina, quando só podia com um balde ou um potezinho?”
É também então por essa via palpável e material que o universo sertanejo tão simbólico para a literatura brasileira se faz permeável ao mundo. Ronaldo cria assim a imagem de um sertão desmistificado, sem perder, todavia, o vínculo com o imaginário fantástico e poético encontrado em suas primeiras narrativas.
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