16 dez Assim na terra como no céu
Em Recife, o calor de dezembro transforma a cidade num jardim de acácias, ipês, caraibeiras, flamboyants, jasmineiros e espatódeas. São as nossas árvores de Natal, enfeitadas com flores naturais. Mangueiras e cajueiros se carregam de frutos em gradações de vermelho, amarelo e verde, pingentes mais bonitos do que os fabricados na China. E se você contempla o que sobrou da mata atlântica, descobre tons prateados nas folhas novas das embaúbas e os frutos dos visgueiros, pendurados em longas embiras, que descem da copa plana parecendo um sombreiro. Tudo tão preciosamente disposto, num requinte estético que nenhum decorador natalino alcançaria.
Pena que nossas florações durem pouco, explodam e desapareçam ligeiro como um por de sol. É a marca dos trópicos, o amadurecimento precoce. Talvez não suportássemos tanta exuberância prolongada, o êxtase esgotaria nossos sentidos. Vivemos numa luminosidade contínua, que expõe imagens, excita e nos acelera. Fomos educados no amor por essa luz feérica, não apreciamos a sombra e o silêncio, o que se resguarda e aquieta. Levamos a sério demais a afirmação de Plínio, O Velho, de que encarar a luz é a coisa mais aprazível para os mortais, e o que está sob a terra é nada. Nossa natureza solar, diurna, prevaleceu sobre os influxos lunares, noturnos. Parecemos conhecer apenas a vida, embora o sol se ponha toda noite, acenando aos homens com a morte.
No mês de dezembro caíam as primeiras chuvas no sertão, as temperaturas baixavam, e um esboço de recolhimento prenunciava o Natal. Homens arrancavam a mandioca nos roçados, lavavam para retirar a terra, punham de molho em potes, esperavam durante três dias que ela fermentasse, descascavam, peneiravam em urupemas grandes, despejavam num saco de fiação estreita e lavavam novamente até sair a goma. Dessa maneira ficava pronta a massa puba. Mulheres faziam bolinhos da massa escorrida – carimãs – e deixavam secando ao sol. Guardadas, elas duravam meses por conta da ausência de umidade na aridez sertaneja. Na véspera da Noite de Festas, desmanchavam-se as carimãs em leite ou água e se aprontavam bolos. Assados em fornos de tijolo refratário, construídos no quintal das casas, eram o maior requinte do banquete natalino, que também tinha sequilhos, pães de ló de goma, manzape, manuê, galinha assada e aluá.
A magia culinária de substituição dos ingredientes não ganhou adeptos apenas nas casas grandes dos engenhos. No sertão, ela também operou seus milagres. Amendoim e rapadura entraram na receita do arroz doce, no lugar de coco e açúcar. Uma extravagante mistura à base de gergelim torrado e pilado, farinha de mandioca, melaço e pimenta do reino moída virou nosso doce de gergelim. Mais exótico do que ele apenas o que batizamos por chouriço. Não se trata de um embutido salgado, mas de um doce produzido com sangue de porco, farinha de mandioca, pimenta do reino, rapadura, castanha de caju ou amendoim torrado e banha de porco. Raridade culinária pouco lembrada e menos ainda degustada em tempos de dieta vegana.
Numa grande tigela de barro se batiam os noventa ou cem ovos dos pães de ló natalinos da minha avó paterna. No lugar da farinha de trigo, a goma seca e alva, armazenada em malas de couro cru. Media-se a riqueza de uma Noite de Festas pelos bolos assados. Em Pernambuco, as senhoras gastavam gemas, manteiga e coco nos bolos Souza Leão, quindins e bombocados. A festa natalina consistia em receber a visita dos parentes e afilhados, oferecer presentes e comida. Podia ter a Missa do Galo, pastoril ou lapinha, reisado, cavalo-marinho ou boi-de-reis, as louvações ao nascimento de um menino, que prosseguiam até o dia seis de janeiro, quando o ciclo se fechava. Tudo sem exageros de luz ou barulho. Reinava o silêncio, ou as vozes cantando e declamando loas simples, vindas da Ibéria, ou de mais longe do oriente árabe e hebreu, e até de reminiscências egípcias e sumérias.
Senhora dona da casa
passe o pente em seu cabelo
que do céu já vem caindo
pingos de água de cheiro.
Caíam as chuvas de dezembro, tão promissoras. Apenas minha avó materna punha-se triste porque se molhava a lã nos pés de ciumeira, estragando a matéria prima com que ela fabricava os bichinhos da lapinha: carneiros, boizinhos, cabras e camelos. Modesto artesanato de mãos calosas, em tardes de ócio, em meio às lembranças das cantigas que as pastoras entoavam na frente dos presépios, nas suas representações.
Ai, ai, que dor na minha alma
de ver o Menino deitado nas palhas.
Queixavam-se as meninas pastorinhas. E nos cordões de reisados, formados pelas corporações de ofício dos engenhos de rapadura, homens e meninos suplicavam:
Abra a porta gente
que eu venho ferido
pela falsidade tão grande
dos meus inimigos.
E as mesmas vozes consolando, respondiam:
Se tu vens ferido
chega pra dentro
sangue do meio peito, jorrando
serve de alimento.
As portas se abriam, comidas eram servidas, trocavam-se abraços, louvava-se o sagrado. A areia prateada e a purpurina das flores, nos altares, brilhavam esplendorosas. Lá fora, nos terreiros e quintais, os frutos maduros desabavam das árvores com estrépito. Pingos de chuva desciam do céu sobre a terra, encharcavam o solo e enchiam os barreiros e os açudes com a mesma fartura das mesas. Recolhido, o silêncio nem se dava conta de que as cantorias e os vivas inundavam os espaços da morada.
Essa casa é bonita é bem feita,
com muito gosto mostra uma barra amarela.
Essa casa é coberta com um véu,
meu Deus do Céu quem será o dono dela?
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