09 dez Fé, Covid e morte
Foi triste o dia de nossa Senhora da Conceição. Mesmo para os não católicos nem devotos, é bonito olhar as casas do morro, pintadas de azul, e as ruas iluminadas para a festa. Neste ano sem procissão, sem sinos tocando, sem salvas de fogos às cinco da manhã, meio dia e seis da tarde, sentimos desamparo. No Recife, celebra-se Iemanjá no dia oito de dezembro, mas os terreiros também fecharam as portas, talvez nem as panelas de oferendas foram levadas ao mar.
Costumo me levantar com a primeira luz do sol para ver os que seguem descalços, vestidos de azul e branco, à igreja onde a santa é celebrada. São muitos, tornam-se multidão quando se reúnem no alto. Mas o medo da Covid afastou os fiéis, os ritos foram esquecidos por conta da pandemia. Na Idade Média, em tempo de peste, cortejos em louvor aos santos percorriam as cidades. A nova religião, a ciência, proíbe que as pessoas se aglomerem. Somos intimados ao isolamento.
Ontem, completei 45 anos de formatura em medicina. Uma data sem muita alegria. Expostos como nunca, os médicos heróis revelaram a fragilidade diante da morte. Um choque para a onipotência de muitos. A ciência sofreu ranhuras. Perguntas ficaram sem resposta.
A pandemia pareceu-me muralha, interceptou projetos, sonhos, fantasias, a busca pela vida. Tempo sombrio. Sombra sobre a sombra do bolsonarismo. Perplexidade e incerteza. Esbravejei, revoltei-me como um profeta antigo, mas obedeci à vontade da ciência médica, cumpri à risca cada ordem, cada prescrição. Estou vivo a um custo elevado. Perdi os acenos de prazer, a proximidade dos amigos e da família.
Quando o vento parecia soprar a favor, nova onda. A doença e a morte voltaram a nos espreitar. As recaídas são piores do que a primeira queda, frustram a esperança. A vacinação ganhou a esfera do poder capital, do capitalismo. No Brasil, tornou-se disputa eleitoral antecipada, eleições de 2022 versus vacina. Jogo, jogo, na cena nacional e internacional. Os pobres ficarão de fora da imunização. A África entregue aos vírus.
A Conceição contempla os filhos desvalidos do alto de sua igreja. Já foi tão poderosa, agora parece frágil. Seu poder retornou ao sobrenatural. Roma, de onde irradiou-se o culto à Virgem, também sofre, desamparada. Nenhum apelo aos céus tem resposta. Pouco vale o perdão concedido pelo Papa Francisco aos que morreram vítimas da Covid. Pelo menos para os que sofreram a perda e ficaram por aqui, nesse “vale de lágrimas”.
“Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura e esperança nossa. Salve! A Vós bradamos os degredados filhos de Eva.”
Continuamos aqui por baixo, desejando que a ciência nos traga consolo. Mas que não retarde, já que os homens da política só atrapalham.
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