Do que morremos todos os dias | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Do que morremos todos os dias

À luz do primeiro sol da madrugada, olhei da varanda os morros de Casa Amarela e senti um aperto na alma, beirando a angústia. O dourado e azul das casas, a cada dia mais escassas de quintais, árvores, arbustos e flores, doeram pela separação. Sofro a falta de gente, ruas e cores na minha vida de agora.

O que me separa desse meio círculo de construções amontoadas, nem é o apartheid social, isso nunca contou para mim, mas a máscara recobrindo meu rosto e a prescrição de isolamento.

Vivi subindo e descendo altos, atravessando córregos à procura de aprendizado e alegria nas brincadeiras de caboclinhos e maracatus, de toques nos terreiros de orixás. Agora… agora só recebo ordem para fechar-me, manter distância das pessoas e hábitos, morrer devagar de uma doença mais grave do que essa que apavora o mundo.

Minha criação e vida se alimentam do convívio humano. Sem isso, estou murchando, envelhecendo mais depressa, perdendo habilidades físicas, força, resistência, respiração e coragem. Tudo o que de melhor a vida me deu, recebi através das pessoas. Sim, a natureza me ofereceu bastante, mas o aconchego do útero materno e um peito farto de alimento chegaram primeiro.

O pior sintoma do isolamento é a raiva de não poder fazer o que desejo. Mas o que eu desejo? A liberdade de fazer tudo, mesmo o que eu nunca pensei fazer, nem farei. Um faminto sente mais fome quando o alimento lhe é negado. Impedem-me de viver para continuar vivo, eis o paradoxo. E o medicamento me mata depressa, a cada dia um pouco.

Cresce a raiva até transformar-se em fúria.

A impotência é um dos seus motores, o acelerador. Não que eu fosse imune à raiva no passado, nunca fui. Sei precisamente a idade em que troquei a timidez pelo enfrentamento raivoso. Só que ela tem crescido, a ponto de me assustar pela virulência. Talvez seja um sintoma da derradeira onda da pandemia. Já chegamos a esse estágio, ainda parecemos no começo de todo esse horror?

As águas do mar são fortes, mas não são como as do rio, cantavam os apanhadores de algodão nas terras de minha avó. O caudal me afoga quando tento atravessá-lo, acreditando que já não serei o mesmo na outra margem. Sou o mesmo, mais avariado. Desminto Heráclito, ninguém atravessa o mesmo rio porque tudo flui. Flui sim, para bem pior.

Existem iras divinas, a briga de Jacó com o Anjo, o furor do Cristo com os vendilhões no templo, a revolta de Prometeu com o seu castigo. Sem arvorar-me divino, experimento as três iras. Porém a mais corriqueira e diária é o desgaste com o nada, com as coisinhas fúteis sem valor ou sentido. Terrível revelação do que morremos e do que nos mata.

O que não me mata me torna mais forte, afirmou Nietzsche. Será mesmo? Seremos melhores depois da terrível prova? Ou apenas estaremos com o Ego mais inflado de tanto olhar para a nossa ferida, tentando saná-la como se fosse a única a doer?

No desespero, enxergamos nós mesmos, exacerbamos o individualismo ao invés da compaixão. E a raiva talvez seja consequência da hiperinflação do Eu, de um suposto amor próprio ferido, indigente de fé em si mesmo. O que aparenta sanidade e força, esconde fragilidade, medo, insegurança. Pobre homem à semelhança de Deus. Pobre eu.

Um homem, Don Juan de Maraña, depois de haver ofendido um incontável número de pessoas, se recolheu a um convento católico, pensando expiar os seus pecados, sobretudo a soberba e a luxúria. Depois de anos, parecia apaziguado. Um dia, foi descoberto em seu retiro por um jovem nobre, cuja irmã havia sido violentada e levada ao suicídio pelo facínora aspirante a santo. O rapaz provocou Don Juan a um duelo, entregou-lhe uma espada, mas ele não reagiu. Por último, o fidalgo cuspiu-lhe no rosto e o antigo valentão desperta, luta e mata o rapaz.

O diabo da raiva mora em nós adormecido, latente, aguardando apenas que acendam o seu inflamável estopim. Quase nada sempre, um argueiro, um sopro.

Os ferimentos da luta nos mantêm despertos e vivos, acreditamos erradamente nisso. Brigamos, urramos, batemos à direita e à esquerda. Desespero? Guerra? Sonho de poder? A paz anda longe dessas coisas. Reside na medida, modéstia e bondade.

Mas isso já se trata do inalcançável Tao. Somos humanos. Quase sempre, desumanos.

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